Inteligência artificial: ameaça ou aliada ao exercício da advocacia?
Desde a revolução industrial, na segunda metade do século XVII, quando o surgimento de máquinas a vapor impactou praticamente todos os aspectos do cotidiano da época, a tecnologia é responsável por profundas mudanças na forma em que vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Atravessamos, agora, a revolução tecnológica, que transformará, mais uma vez, nossas vidas – em maior escala, alcance e complexidade.
Os avanços são inegáveis. Inovações aplicadas à saúde elevaram consideravelmente a expectativa de vida, na agricultura propiciaram melhora expressiva na produtividade e na educação dispensaram a presença física de professores na sala de aula para a transmissão de conhecimento.
A preocupação, todavia, ainda é a mesma de séculos passados, quando a revolução industrial gerou milhares de desempregados: as máquinas substituirão o trabalho humano? Segundo pesquisas, em 2025, pelo menos um em cada quatro empregos conhecidos hoje deverá ser desempenhado por softwares, robôs ou drones.
Pensamos, imediatamente, em trabalhos braçais e mecânicos, mas as máquinas de inteligência artificial poderiam superar o ser humano também em áreas como a literatura, pintura e música? Ou seria a criatividade uma das últimas barreiras que nos diferenciam de computadores?
A fronteira vem se tornando cada vez mais tênue. Alguns exemplos: alimentados com quase 5 mil páginas dos livros de Game of Thrones, um software escreveu o sexto volume da saga, criando, inclusive novos personagens; a Microsoft desenvolveu um programa que, por meio da análise dos quadros de Rembrandt, criou novas pinturas com as mesmas características do renomado artista; e a Sony lançou, recentemente, músicas compostas exclusivamente pelo software Flow Machines, que consegue compreender as melhores interações entre estilo, ritmo e voz armazenados em um imenso banco de dados.
Se até nas artes – ainda que o livro, as telas e as músicas citadas não sejam um primor de originalidade – máquinas já fazem o papel de seres humanos, estaríamos caminhando em direção à nossa dispensa total? Alguma área do conhecimento estaria a salvo da emulação do intelecto humano? São muitas as indagações que podem derivar desse assunto, mas no que concerne à seara jurídica, campo de nosso interesse, as máquinas poderiam substituir os operadores do direito, mais especificamente os advogados?
Vale lembrar que o campo jurídico nunca foi afeito a grandes inovações tecnológicas. Uma das poucas áreas realmente beneficiadas foi a de obtenção de provas no âmbito do processo penal.
Existem aparelhos cada vez mais avançados para captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos e a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas.
Na Polícia Científica, os peritos carregam a Blue Maxx, lanterna especial capaz de identificar resquícios orgânicos da vítima ou do suspeito – fragmentos de pele, unha, sangue ou fios de cabelo – no local do crime. O aplicativo e-Perícia permite que os dados, fotografias e georeferenciamento coletados sejam enviados instantaneamente, a partir de um tablet, para o Instituto de Criminalística, o que agiliza os trabalhos e permite a conclusão das investigações em menor tempo.
Policiais Federais dispõem de softwares capazes de processar, de forma simultânea, dados retirados de uma centena de equipamentos eletrônicos, possibilitando que todo o material esteja disponível para pesquisa em um único dia. Métodos tecnológicos probabilísticos e estatísticos identificam padrões de superfaturamento.
A Receita Federal seleciona os contribuintes que serão fiscalizados cruzando dados de redes sociais com as respectivas informações bancárias, de cartórios, de propriedade de veículos e declarações de fontes pagadoras, dentre outras.
No Ministério da Transparência, um sistema de inteligência artificial consegue, com níveis altíssimos de eficiência, mapear o risco de servidores se envolverem em casos de corrupção. Alimentados com informações sobre funcionários exonerados pela prática de crimes contra a administração pública, o programa conseguiu apontar que 90% deles tinham realmente probabilidade elevada de se corromperem.
Para os advogados, contudo, houve pouco avanço desde o advento da internet, que permitiu que pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais – que antes demandavam tempo e acesso a boas bibliotecas – fossem realizadas em segundos.
O progresso, nesse período, foi tímido. Podemos citar a digitalização de processos, que possibilitou aos advogados acompanharem seus casos virtualmente, sem a necessidade de deslocamento aos diversos fóruns nos quais tramitam as ações. Ou o peticionamento, que também passou a ser realizado eletronicamente. Mais recentemente, começamos a discutir novas formas de interação e execução de atos processuais que prestigiam a celeridade, como a possibilidade de intimações e citações das partes em aparelhos celulares, já autorizada pelo Conselho Nacional de Justiça, ou até mesmo a realização de audiências de menor porte pela mesma ferramenta.
Todas as tecnologias mencionadas, entretanto, automatizaram trabalhos técnicos e burocráticos, permitindo a otimização de tempo do advogado, mas sem perspectiva de substituí-lo.
Em meados de 2015, todavia, surgiu o que parecia ser o grande salto tecnológico no campo do Direito: um grupo de estudantes da Universidade de Toronto criou, com apoio da IBM, o supercomputador Ross, o primeiro advogado digital do planeta. Não se tratava mais de um mero sistema de pesquisas ou de automatização de processos, mas de aplicação da inteligência artificial propriamente dita ao meio jurídico.
O “advogado virtual”, ou “advogado-robô”, que consegue analisar milhares de documentos em frações de segundos, foi desenvolvido para ler e compreender a linguagem natural, postular hipóteses quando questionado, pesquisar e gerar respostas com referências e citações, fundamentando suas conclusões.
Ross, portanto, indicaria soluções jurídicas para casos concretos, apontando argumentos a favor ou contra determinada tese e apresentando perspectivas de resultados práticos, com indicação da probabilidade estatística de ganho ou perda da causa. Analisaria até mesmo o histórico de decisões do juiz.
Embora tenha sido alimentado com gigantesco volume de dados, legislação e precedentes jurídicos mundiais, o grande diferencial da máquina seria a capacidade de computação cognitiva, que continua aprendendo e apurando seu desempenho à medida em que é utilizada.
Além da melhora na performance, a nova tecnologia promete diminuir os custos, incidências de erros e influências externas que poderiam afetar as decisões do advogado em suas defesas.
Em julho deste ano, foi lançado o Eli, primeiro robô advogado do Brasil. Assim como seu irmão canadense, o Eli se vale de inesgotável capacidade analítica de dados para otimizar processos, aumentando a produtividade e qualidade do serviço do advogado.
Robôs como o Ross ou Eli ainda atuam como assistentes jurídicos, sendo indispensável a figura do advogado para direcionar o trabalho dos robôs. Podemos ficar despreocupados, então, já que as máquinas sempre precisariam de um operador do Direito para coordenar suas atividades?
Na verdade não. Softwares também já conseguem atuar, sem intermédio de um advogado, em casos de baixa complexidade. O DoNotPay fez enorme sucesso assessorando motoristas multados por estacionar em local proibido. O programa já venceu mais de 160 mil contestações no Reino Unido e em Nova York, o que representa 64% dos casos.
Repetindo a pergunta anteriormente formulada: seria o fim da advocacia tradicional? Softwares e máquinas de inteligência artificial – que não sofrem as nossas limitações de processamento e armazenamento de informações – dispensariam o ser humano também no campo jurídico?
A resposta é auspiciosa: pelo menos por ora, o advogado não precisa se preocupar com a perspectiva de substituição.
O DoNotPay, por exemplo, atua em processos simples e burocráticos. O usuário responde a perguntas formuladas e o software prepara os documentos, que devem ser encaminhados à corte local.
O valor dos robôs advogados, por seu turno, ainda é extremamente elevado – não custam menos de 3 milhões de dólares –, razão pela qual dão expediente em pouquíssimos escritórios, como no Baker & Hostetler, uma das maiores bancas de advocacia dos Estados Unidos.
Ademais, mesmo um primor da tecnologia, como Ross, é incapaz de substituir o ser humano em todas as etapas do processo jurídico.
Tarefas repetitivas e burocráticas, ou que envolvam compilação de informações, realizadas em larga escala, certamente poderão ser realizadas por robôs. A coleta e análise de dados, organização de documentos, formatação de petições, acompanhamento de carteiras e rotina de processos, elaboração de relatórios, intepretação de decisões judiciais, cálculo de custas e expedição de guias de pagamento, apenas para citar algumas atividades, serão, em um futuro próximo, de responsabilidade exclusiva das máquinas.
Mas a figura do advogado continua indispensável. O robô permitirá que seu tempo seja otimizado, utilizado em atividades eminentemente intelectuais, que não possam ser automatizadas. Na medida em que máquinas substituem processos burocráticos, as pessoas procurarão aprofundar ainda mais as conexões interpessoais. O ser humano ainda é único em sua capacidade de discernimento e análise do imponderável, que envolve feeling, intuição, emoção, paixão, criatividade e pensamento crítico.
Alguém consegue imaginar um cliente à vontade expondo o problema que tanto lhe aflige para um robô, por meio do preenchimento de formulários? Ou absolutamente confortável com uma máquina de inteligência artificial sustentando oralmente, com sua voz sem modulação, suas razões de inconformismo perante um Tribunal?
Na atividade jurídica, assim como em todas as áreas do conhecimento humano, será preciso mudar nossa forma de pensar, para que a tecnologia seja usada como aliada, e não como ameaça.
Não é improvável que no Brasil, país com maior número de advogados do mundo – aproximadamente 1 milhão de profissionais – parte deles seja realmente substituída. Será o fim do “recorta e cola”. Permanecerão ativos e indispensáveis os advogados que verdadeiramente se dediquem às atividades intelectuais. Aqueles que, após consultar todas as informações, estudos e teses sobre determinado assunto – dados esses que poderão ser compilados por robôs –, busquem encontrar a estratégia mais adequada, levando em consideração variáveis que escapam da tecnicidade das máquinas.
Mas vale, por fim, um conselho: não subestimemos a capacidade da evolução tecnológica. Estamos à salvo, mas não se sabe por quanto tempo.