Artigo publicado em 11 de agosto de 2015 no site www.migalhas.com.br

Autor: Tales Castelo Branco

Corria o ano de 1961. Estava no quinto ano da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie e já ensaiava os primeiros passos na advocacia com banca própria e o auxílio de um bondoso advogado que assinava as petições iniciais para mim.

No dia 11 de agosto fui normalmente à Escola para saber das coisas, já que era o orador oficial do Centro Acadêmico João Mendes Jr. Tão logo adentrei o pátio da Faculdade, duas moças e um rapaz do primeiro ano acercaram-se de mim, falando aos pedaços e com muita ansiedade: — Nós estamos planejando dar um “pendura” e escolhemos você, que é o nosso orador oficial, para fazer o discurso de agradecimento ao final do almoço.

Repliquei que não era adepto de “penduras” e que essa era uma tradição dos estudantes do Largo São Francisco; e, de minha parte, sempre lutara para construir, por conta própria, a história da nossa jovem Faculdade. Dei-lhes, em tom de brincadeira, uma ideia: — Por que vocês, no final do almoço, não cantam aquela musiquinha que a moçada das arcadas cantava antigamente nos seus “pinduras”, quando não tinham um orador vibrante, convincente e bonito como eu? É assim: — “Garçom tira a conta da mesa e bota um sorriso no rosto, seria muita avareza cobrar do 11 de Agosto.” O finalzinho – “cobrar do 11 de Agosto” — vocês mudam para “cobrar em 11 de agosto”.

Os três não se deram por vencidos, mesmo porque a intenção era formar dois casais, e eu, além de fazer o discurso, deveria aparentar ser namorado de uma das calouras. Afinal acabei cedendo. Estava terminando meu curso de Direito e nunca havia dado um “pendura”; que raio de acadêmico eu tinha sido; sempre metido com política, querendo reformar o mundo.

O trio já havia escolhido um restaurante na Avenida São João e lá fomos nós com a maior cara de pau. Sentamo-nos e comemos uma deliciosa bacalhoada regada a cerveja. Claro que, como mandava o figurino, “livramos a cara do garçom”, abrindo o jogo e dando-lhe polpudo “cala a boca”.

Após o tradicional cafezinho, era hora de eu entrar em cena. Levantei-me desempenado, e sabendo de antemão pelo garçom que o dono da casa chamava-se Júlio e era português, produzi uma bela salada oratória em que misturava as façanhas de Júlio César com as grandes aventuras marítimas lusitanas, D. Pedro I e a fundação dos cursos jurídicos no Brasil.

O “Seu Júlio”, quando eu estava no ápice do discurso, se aproximou e mostrava-se emocionado. Só não gostou quando eu falei em “cortesia da casa em homenagem ao dia 11 de Agosto”. O homem virou fera e gritou: — Ninguém sai daqui, seus marotos; garçons, fechem as portas; pessoal da cozinha, venha ajudar. Imediatamente, formou-se um paredão humano à nossa frente. O “nosso garçom”, meio sem graça, ficou entre eles, bem quietinho.

O português não se conformava e com ira redobrada deu ordem para chamar a polícia. Em menos de uma hora estávamos nós quatro no 1o Distrito Policial, na sala do Delegado de plantão. Por sorte era o Dr. Melinho, que eu já conhecia das minhas andanças pelas delegacias de polícia da Capital. Seu Júlio estava possesso. Aí, foi a vez dele discursar; falou quase chorando, mas alto e firme: — Seu Doutor, eu acordo todos os dias às três horas da manhã e vou para o mercadão fazer as compras. Compro tudo do bom e do melhor; tudo fresquinho. Esse bacalhau, que esses marotos comeram sem pagar, é da Noruega. Isso não está certo. Esses malandros têm que ficar presos, Seu Doutor.

O Dr. Melinho, após piscar um olho para mim, falou grosso: — Pode ficar tranquilo, Seu Júlio, esses marotos vão descer já para o xadrez. Pode ir cuidar dos seus negócios que daqui eles não saem tão cedo. — Pois, pois, Seu Doutor, assentiu o português e arrematou: — é assim que se faz. Em seguida, tirou um lenço do bolso e enxugou uma lágrima furtiva.

Depois do Seu Júlio sair, o Dr. Melinho, que era um emotivo, comentou: — Sinceramente, fiquei com pena do português. Dei muito “pindura” na época de estudante; uma vez até fui em cana, de araque é claro, mas ver alguém chorar por isso me deixou triste; estragou o meu plantão… Bem, mas vamos ao que interessa: daqui a uma hora vocês vão saindo um por um; sabe-se lá se o português tá na espreita? E assim foi feito. Cada qual saiu separadamente. Estava pessoalmente aborrecido, muito aborrecido. Fui o último a sair. Alonguei uma conversinha com o Dr. Melinho: — Pois é, Dr. Melinho, essa brincadeira estragou o seu plantão e amargurou a minha noite.

O delegado tirou o paletó, relaxou o corpo na cadeira, e perguntou sério, cravando os olhos em mim: — Você já não é formado, já não é advogado? — Não, Dr. Melinho, respondi, sou Solicitador Acadêmico (atual Estagiário); termino a Faculdade este ano, mas já montei meu escritorinho numa pequena sala na Rua Anita Garibaldi. — Muito bom, concordou meu interlocutor. É assim que se faz. Eu jurava que você era advogado. Você engana bem.

Sorri meio sem graça, dei-lhe um forte abraço de agradecimento e fui tentar dormir com aquela lágrima do Seu Júlio perfurando minha consciência. Sentia-me, realmente, um “maroto”. Consultei o dicionário em busca de um sinônimo mais ameno, mas o mínimo que encontrei foi “malandro”.

Só consegui dormir quando decidi ir pagar a despesa no dia seguinte. Foi o que fiz. Pela hora do almoço apareci no restaurante do Seu Júlio. Ao defrontar-me com ele, o português foi logo dizendo, com a cara amarrada: — Pois, pois, que vem cá fazer esse maroto? — Vim pagar a conta de ontem, Seu Júlio, retruquei. Estou arrependido. Isto em Direito Penal chama-se “arrependimento eficaz”: o crime deixa de existir se o arrependimento for eficaz. – Olha cá, Seu moço, o seu gesto é muito bonito, espantou minha raiva; o senhor não me deve nada; venha cá no sábado comer uma feijoada comigo, é tudo fresquinho, comprado no mercadão. O senhor é meu convidado.

No sábado realmente fui. Comi uma saborosa feijoada. E uma surpresa: Seu Júlio providenciara dois charutos baianos Suerdieck. E durante todo o almoço, apesar dos meus protestos, só me chamou de “Seu Doutor”.

Agora, no outono da vida, quando chega o dia 11 de Agosto, homenageio, com a força da lembrança, mais o Seu Júlio do que D. Pedro I – o fundador dos cursos jurídicos no Brasil.

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*Tales Castelo Branco é advogado criminalista da banca Castelo Branco Advogados Associados.