Criptomoedas, lavagem de dinheiro e regulamentação
31/08/2019 | Valor Econômico
Por Fernando Castelo Branco e Raphael Debes Chan Spinola Costa
Com a surpreendente valorização das moedas digitais em 2017 – apenas o Bitcoin cresceu mais de 1300% -, o investimento nesses ativos tornou-se frequente.
Enquanto, no final de 2017, a Bolsa de Valores (B3) contava com pouco mais de 600 mil investidores ativos, apenas uma Exchange (corretora de moedas digitais) detinha aproximadamente 750 mil clientes.
O Bitcoin, criptomoeda mais consolidada no mercado, surgiu logo após a crise financeira de 2008. Com o descrédito do setor bancário, a moeda digital apareceu como alternativa, permitindo a negociação de valores sem a intermediação de instituição financeira.
As transações são registradas em um banco de dados, denominado blockchain, espécie de livro-razão público, criptografado e imutável, que contém as transferências realizadas desde o início do sistema. A identificação das operações no blockchain ocorre por meio de código sequencial de números e letras aleatórios, impossível de vinculação imediata com determinada pessoa.
No que diz respeito aos dados dos negociadores, a criptomoeda é muitas vezes associada ao “dinheiro vivo”, pois não há terceira parte intermediária que tenha conhecimento de suas identidades.
É justamente o anonimato – e a possível dificuldade de rastreamento das trocas de moedas digitais dele decorrente – que torna o ambiente da negociação das criptomoedas favorável à prática criminosa, em especial a lavagem de capitais, caracterizado pela dissimulação ou ocultação de bens, direitos e valores provenientes de infração penal.
Indícios relacionados à lavagem por meio de criptomoedas já foram identificados pelas autoridades brasileiras. É o caso das Operações Pão Nosso, desdobramento da Lava Jato, Código Reverso, Antigoon e Patrick.
A lavagem de dinheiro é composta por três fases: ingresso de recursos ilícitos no sistema econômico; operações visando quebrar a cadeia de evidências sobre a origem dos recursos; e realização de investimentos em negócios lícitos. Com isso, o “dinheiro sujo” se afasta da origem, dificultando a associação direta com o crime e, consequentemente, sua apuração.
As criptomoedas são transacionadas de forma rápida, em escala global, sem burocracia ou interferência de instituição financeira, o que atrapalha a identificação do caminho percorrido pelo dinheiro.
A dissimulação de valores pode ser facilitada com a rede de anonimato Tor, métodos para ocultar endereços de IP e misturadores de criptografia, técnica que embaralha o encadeamento das operações.
O economista Fernando Ulrich, referência em criptomoedas, afirma que o Bitcoin não garante o anonimato, mas a utilização de pseudônimo. Segundo ele, todas as transações de Bitcoin podem ser identificadas no blockchain, possibilitando sua rastreabilidade, além do fato dos dados de uma pessoa ou endereço IP ficarem registrados quando a negociação é realizada na web ou na conversão de moeda digital em espécie nas Exchanges.
A troca de moeda digital por moeda corrente em corretora parece ser o ponto frágil da lavagem por meio de criptomoedas, uma vez que os valores convertidos deverão ser transferidos da Exchange para determinada conta bancária, ingressando no sistema financeiro tradicional.
O limbo jurídico em que se encontram as moedas digitais é questão preocupante, sobretudo em matéria criminal.
As classificações das criptomoedas no mundo são variadas. No Brasil, a Receita Federal, em seu Manual de Perguntas e Respostas de 2019, as considera ativos financeiros e determina que sejam declaradas.
Recentemente, em 1o.08.19, com a entrada em vigor da Instrução Normativa no 1.888/2019, a Receita Federal definiu criptoativo, para fins de aplicação da instrução, como “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta” e afirmou “que não constitui moeda de curso legal”.
De acordo com a referida instrução, dados como data, titulares, criptoativos utilizados, quantidade de criptoativos negociados, entre outros, deverão ser declarados mensalmente à Receita Federal, sob pena de pagamento de multa, sem prejuízo de eventual comunicação ao Ministério Público Federal, “quando houver indícios da ocorrência” de lavagem de dinheiro.
O Banco Central, por sua vez, emitiu o Comunicado no 31.379/2017, anunciando que as criptomoedas não são reguladas, autorizadas ou supervisionadas pela autarquia federal. Em nota divulgada no site da instituição no dia 26.08.19, o Banco Central classificou os criptoativos como “ativos não-financeiros produzidos”, seguindo recomendação do Fundo Monetário Internacional – FMI.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em relatório semestral de supervisão baseada em risco (julho-dezembro de 2017), informou que a moeda digital não é considerada valor mobiliário, razão pela qual está fora de seu perímetro regulatório.
Por meio dos Ofícios Circulares nos 1/2018 e 11/2018, a Superintendência de Relações com Investidores Institucionais da CVM reforçou a indefinição conceitual das moedas virtuais, sobretudo em território nacional. Reconheceu, no entanto, a possibilidade de fundos de investimentos nacionais realizarem investimentos indiretos em criptoativos no exterior, ressaltando a necessidade de se observar regras de transparência e segurança, sobretudo para evitar a lavagem de capitais.
A Câmara dos Deputados, por meio do Projeto de Lei no 2.303/2015, iniciou, ainda de forma bastante modesta, a tentativa de regulamentação dos criptoativos. Há, ainda, o Projeto de Lei no 2.060/2019 que confere diferentes definições para os criptoativos e cria um tipo penal específico para as pirâmides com moedas digitais, além de estabelecer outras disposições.
Embora não exista consenso sobre a definição da moeda digital, é fundamental que haja posicionamento claro e definitivo das instituições sobre a questão, além de imediata regulamentação do instituto, conferindo estabilidade nas relações financeiras e previsibilidade das consequências jurídicas das condutas daqueles que pretendem participar de alguma forma do mercado.
A revelar a importância da correta delimitação do tema, inclusive sob o ponto de vista penal, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Conflito de Competência no 161.123/SP em dezembro do ano passado, afastou a incidência de crimes previstos nas Leis nos 6.385/1976 (Mercado de Capitais) e 7.492/1986 (Sistema Financeiro Nacional), “pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM)”.
Em 2018, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), entidade composta por mais de 70 órgãos públicos, lançou medida para prevenção da utilização de criptomoedas para lavagem de dinheiro, com proposta de alteração da lei que trata sobre esse crime.
Em que pese o cenário de indefinição sobre a classificação da moeda digital e as consequências jurídicas dele decorrentes, o crescimento do mercado de criptomoedas no Brasil indica que a matéria será regulamentada em breve. A medida mostra-se adequada, pois permitirá a repressão do uso da moeda digital para fins ilícitos, bem como poderá incentivar a utilização lícita do ativo, seja com fim especulativo, como reserva de valor, ou, ainda, para realizar transações céleres em escala global e com baixo custo.
Fernando Castelo Branco é sócio do Escritório Castelo Branco Advogados Associados. Professor e Mestre de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal Econômico e Corporativo da Escola de Direito do Brasil. Diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.
Raphael Debes Chan Spinola Costa é advogado do Escritório Castelo Branco Advogados Associados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Pósgraduado em Direito Penal Econômico e Corporativo da Escola de Direito do Brasil. Membro do Comitê Penal do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.