O advogado e a nova lei de lavagem de dinheiro
Artigo publicado no Anuário 2012 do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Autores: Fernando Castelo Branco, Fernanda de Almeida Carneiro, Ana Fernanda Ayres Dellosso, Daniel Alan Burg e Fernando Hideo lochida Lacerda
Buscando maior rigor e eficiência na persecução penal do crime de lavagem de dinheiro, após longo período de tramitação legislativa, foi promulgada a Lei 12.683/2012, que trouxe significativas alterações à Lei 9.613/98.
Imprecisa quanto ao seu alcance, a Lei tem sido objeto de acaloradas discussões, duas de especial relevância para os advogados e sociedades de advogados: a possível inclusão dos profissionais da advocacia dentre as pessoas sobre as quais recai o dever de comunicar atividades suspeitas de seus clientes; e o recebimento de honorários, que poderia, em tese, acarretar participação criminal do advogado no crime de lavagem de dinheiro.
São sobre esses dois aspectos que teceremos algumas considerações.
Embora não conste expressamente na enumeração do rol de pessoas obrigadas a auxiliar na identificação de atos que aparentemente constituam prática de lavagem de dinheiro, podemos, em tese, identificar os advogados na classe dos profissionais que prestam serviços de assessoria, consultoria, aconselhamento e assistência em operações imobiliárias, societárias, financeiras, contratuais etc. (art. 9o, XIV, da Lei 12.683/2012).
Contudo, a inviolabilidade do advogado no exercício da profissão é resguardada pela Constituição Federal, que, em seu artigo 133, determina ser o advogado “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Trata-se, como se vê, de norma constitucional de eficácia contida, produzindo imediata e plenamente seus efeitos, a serem possivelmente delimitados pelo legislador ordinário.
Os contornos da inviolabilidade do advogado estão traçados pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e pelo Código de Ética e Disciplina da OAB, normas especiais por meio das quais se deve pautar a atividade dos profissionais, instrumentalizando seus direitos e deveres.
De plano, convém identificar as atividades acobertadas pelas disposições inerentes à advocacia, quais sejam: (I) a postulação a órgão do Poder Judiciário e (II) as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas (art. Iº da Lei 8.906/94).
Vê-se, portanto, que inexiste aprioristicamente qualquer diferenciação entre as atividades de representação contenciosa e atuação consultiva ou assessoria jurídica em operações: ambas são atividades privativas da advocacia e estão acobertadas pela mesma disciplina profissional. Admitir a existência de duas “classes” de advogados, uma delas destituída de sigilo profissional, configuraria incabível entorse nos deveres institucionais classicamente consagrados e constitucionalmente delimitados.
Fixada a impossibilidade de distinção entre “classes” de advogados, questão que se pretende descortinar é a abrangência do sigilo profissional inerente à advocacia. Nesse sentido, o Estatuto estabelece o sigilo não apenas como direito, mas principalmente como dever dos advogados, consistindo infração disciplinar – sob pena de censura, suspensão, exclusão e multa – sua violação (art. 34, VII, da Lei 8.906/94).
A violação ao sigilo profissional é, inclusive, tipificada como crime na legislação penal[1], sendo os advogados que tomarem conhecimento de fato relevante em função do exercício da profissão também considerados impedidos de depor na condição de testemunhas, segundo a legislação processual civil e penal.[2]
Ora, se o advogado não pode ser compelido, na condição de testemunha, a trazer ao conhecimento do Poder Judiciário fato resguardado pelo sigilo profissional, que dizer de uma norma que pretende tornar o advogado o delator de seu cliente?
Sem embargo, parece inquestionável, no cenário atual – inclusive internacional -, que os advogados que tenham sua atuação de qualquer forma relacionada a litígios e ações contenciosas, não são alcançados pela obrigação de comunicação de atividades suspeitas de seus clientes.
Não menos evidente deve ser o reconhecimento de que mesmo a advocacia consultiva e a prática de direção e assessoria jurídica, assim considerados atos privativos de advogado, estão acobertadas pelo sigilo profissional e, portanto, impossível seria pretender sua sujeição às obrigações administrativas contempladas pela nova lei.
Se, de um lado, traz-se à baila o direito à ampla defesa, constitucionalmente assegurado (art. 5o, LV), para demonstrar que o sigilo profissional protegeria os atos privativos de advogados; de outro, não menos importante, está a garantia assegurada por nosso ordenamento jurídico contra a autoincriminação – o direito de não produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere), contemplado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, ‘g’), norma com eficácia supralegal em nosso ordenamento jurídico.
Logicamente, ao transformar advogados na figura de delatores de seus clientes, a legislação estaria invertendo os papéis institucionais, subvertendo a garantia que veda a autoincriminação dos próprios clientes. Isso porque de nada adianta garantir ao réu o direito de não se autoincriminar, mas exigir do depositário legal de sua confiança a notificação às autoridades controladoras de supostas irregularidades praticadas por eles.
Conclui-se, portanto, que o ordenamento jurídico sistematicamente interpretado, calcado no princípio da especialidade – segundo o qual norma específica derroga a geral – não permite solução outra senão o reconhecimento da extensão do sigilo profissional a todos os dados e informações obtidas mediante a prática de atividade privativamente reservada à advocacia: sejam eles ligados à postulação ao Poder Judiciário ou restrinjam-se a consultas ou assessoramento jurídicos.
O recebimento de honorários, que poderia, em tese, acarretar participação criminal do advogado no crime de lavagem de dinheiro é outro aspecto que vem suscitando celeumas.
Ocorre que entre o recebimento de honorários de cliente suspeito da prática de infração penal e a participação criminosa em atos de lavagem de dinheiro, existe um longo caminho a ser delimitado e que compreende a noção do delito como um encadeamento de condutas destinadas ao fim de conferir aparência lícita a valores obtidos por meio de crimes, em determinado contexto de fatos.
Não fosse assim, estaria, no mínimo, maculado o direito do acusado à livre escolha do defensor e amesquinhada a garantia constitucional à ampla defesa, apenas em razão de haver suspeita de lavagem de dinheiro. É dizer: se o recebimento de honorários do acusado de prática de infração penal pudesse sempre ser presumido como ato de lavagem de dinheiro, chegaríamos ao absurdo de impor advogados dativos ao patrocínio de todas essas causas.
Bem por isso, em 22.5.2007, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados opinou pela inconstitucionalidade e rejeição de projetos de lei que previam a exclusividade de advogados dativos para defesa de acusados de branquear capitais, bem como a obrigação destes de comprovar ao juiz do processo a origem lícita dos honorários pagos ao seu advogado.
A atenta observação sobre a lei de lavagem brasileira e os aspectos objetivos dos tipos penais faz ver que o recebimento de honorários espúrios em si não configura conduta penalmente típica. Não há conduta de ocultar ou dissimular, tampouco os elementos das figuras equiparadas. Como aponta a doutrina: “O dinheiro recebido por profissional liberal, em contraprestação a serviços realmente efetuados, com a regular emissão de nota fiscal, não contribui para um mascarar o bem, uma vez que seu destino é conhecido. Não há ato objetivo de lavagem do dinheiro. A transparência/formalidade do pagamento afasta a incidência do dispositivo”.[3] [4]
Por outro lado, se o recebimento de honorários, por si só, não configura prática de lavagem de dinheiro por advogado, também é necessário afastar o raciocínio simplista e ingênuo de que o pagamento de serviços advocatícios nunca configurará participação no dito crime.
Muito pelo contrário. Caso o advogado atue fora do escopo da sua profissão, contribuindo dolosamente para a incorporação de recursos provenientes de atos ilícitos na economia, realizando, concebendo ou planejando operações, de modo a ocultar ou dissimular a origem dos valores, incorre sem qualquer ressalva na prática do crime de lavagem de dinheiro, transformando-se em coautor da ação criminosa.
Nesse contexto, possível inserir na figura penal da lavagem o recebimento de honorários, se verificado que representa instrumento do conjunto fático de processamento de lavagem de dinheiro, além da análise de todos os elementos subjetivos e objetivos do tipo penal.
Entendemos, portanto, não ser cabível a aplicação das regras contidas na Lei 12.683/2012 aos advogados e sociedades de advogados que atuem dentro dos limites éticos e normativos de sua profissão.
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[1] Violação do segredo profissional
Art. 154-Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
[2] CPC: Art. 405. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.
§ 2o São impedidos:
III – o que intervém em nome de uma parte, como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes.
CPP: Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.
[3] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 141.
[4] Quanto às figuras equiparadas: “Também não existem as demais formas típicas (§ 1.° e § 2.°) porque ausente a intenção de ocultar ou dissimular no recebimento do pagamento, elemento subjetivo inerente aos tipos penais em comento, como já discutido. O advogado almeja apenas para a remuneração por seus serviços e o fato de receber formalmente os valores aponta para a existência de qualquer vontade de contribuir para o seu encobrimento. Como já indicado, o mero beneficiário dos valores lavados não participa do crime, mesmo que saiba de sua prática. O ato de gastar o dinheiro é mero exaurimento do tipo de lavagem, não integra o delito. E isso parece valer para o advogado contencioso e para o operacional, pois o recebimento de honorários é relacionado com a prestação do serviço em si e não com o conteúdo do serviço prestado”.(BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 141).