A defesa da dignidade profissional
Anurário CESA – 2016
A DEFESA DA DIGNIDADE PROFISSIONAL
Fernando Castelo Branco
Na qualidade de Conselheiro da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, no triênio 1998/2000, atendendo honrosa designação do eminente Presidente Rubens Approbato Machado, coube-me o desagravo de vários colegas Advogados ofendidos no exercício da profissão ou em razão dela.
A medida, prevista no Estatuto da OAB como bem assinalado por Luiz Carlos de Azevedo, é “de caráter extremo, que deve ser reservada aos casos excepcionais em que o advogado é ofendido no estrito exercício profissional, refletindo-se tal ofensa em aviltamento à própria classe”.
Exatamente para opor-se a acontecimentos dessa natureza é que nasceu o instituto do desagravo público, definido por Rui de Azevedo Sodré como “a melhor proteção à dignidade do profissional quando injustamente atacado”.
Não está em questão a honra pessoal do Advogado, mas a sua dignidade profissional, que não pode ser arranhada impunemente, porque, mais do que indispensável ao livre exercício das suas prerrogativas, é vital à defesa e garantia dos interesses que lhe são confiados por seus clientes, quase sempre em momentos de aflitiva angústia.
Surpreendente e triste que gravames desse jaez, normalmente partam daqueles de quem se esperaria respeito às regras de urbanidade nas lides forenses.
Sejam eles Magistrados, que deveriam pautar-se pelo conselho de Carnelutti de que “os juízes são como os que pertencem a uma ordem religiosa, devendo mostrar-se como um exemplo de virtudes”. Atentos também aos mandamentos do Juiz, elencados por Juan Carlos Mendoza, advertindo o julgador quanto à imperiosa “necessidade de respeito à dignidade alheia, nos atos e nas palavras”. Sejam Promotores de Justiça, dos quais, igualmente, seria justo esperar obediência ao “Decálogo do Promotor”, aprovado em Havana, no II Congresso Interamericano do Ministério Público, em 1956. Nesse Decálogo, elaborado por César Salgado, um dos fundadores do Parquet em São Paulo, adverte-se os membros da renomada instituição quanto à imperiosa consciência “de sua grave missão, lembrando-se de que falam em nome da lei, da justiça e da liberdade”. Alertando, ainda, para a necessidade de se conservar “a dignidade e a compostura, que o decoro de tuas funções exige”.
A vaidade natural e a vindita, como bem lembrado pelo culto José Renato Nalini, são companhias indesejáveis, podendo transformar toda e qualquer questão em objeto de demanda, apenas pelo gozo inefável de valer-se do despotismo.
Não se deve confundir a bravura, na sua lídima acepção, com a bravata, definida por César Salgado como a intemperança de atitudes daqueles que se valem de recursos menos dignos para alcançar um objetivo. Os que assim procedem nunca chegam a ser bravos: são apenas arrogantes.
A paixão pelos debates não pode empolgar os operadores do Direito ao ponto de levá-los à prática de excessos incompatíveis com a leal civilidade processual.
Só é passível de admissão o uso de armas nobres no prélio judiciário. Os litigantes não se embuçam, nem se açoitam. Mas pelejam de viseira erguida, frente a frente, como os cavaleiros combatentes em um ritual de honra.
Felizmente, não se trata de falha institucional, tendo em vista que a seriedade do Poder Judiciário e do Ministério Público não é maculada pelo ato incoerente, praticado por minoria de seus representantes.
Somos, nós Advogados, dignos e merecedores das candentes palavras do inesquecível Juiz Costa Manso: “O advogado encara os litígios, identificando-se com os interesses de seu constituinte, e essa identificação é tanto maior quanto melhor seja o advogado”.
Ao largo desses prejudiciais embates, mais próximos do exercício da Advocacia, é forçoso reconhecer que, nos dias atuais, a pretexto de combater a impunidade, muitos ataquem os Advogados, exibindo vigorosa vertente de emulação. O cearense Raimundo Pascoal Barbosa, grande defensor das prerrogativas profissionais, que lhe valeram o epíteto carinhoso de “O Advogado dos advogados” – costumava dizer, em suas brilhantes conferências, que tudo não passava de simples “dor de cotovelo”. E arrematava: – “Quando se fala em advogado e ladrão, ninguém se espanta; mas ao revelarmos que Santo Ivo e Santo Afonso de Liguori haviam sido Advogados, a resposta vem ligeira: – Não é possível!”, numa clara demonstração de pura inveja.
Importante, agora, anotar que o desagravo às ignomínias não é ato de retorsão, não estratifica gesto de vindita, nem muito menos resume ato de agressão. É, ao lado do repúdio ao ato ofensor, manifestação de solidariedade de todos aqueles que, injustamente, também são ofendidos, quando um colega é, de alguma forma, afrontado no exercício de nossa nobre profissão.
Hoje, sob nova roupagem, a Advocacia em geral vem sendo constantemente atassalhada principalmente por informações maldosamente veiculadas pela mídia.
Não se trata mais de casos isolados e pontuais de ofensas a colegas. Atualmente está equivocadamente disseminado, como bem lembrado pelo eminente Presidente do CESA, Carlos José Santos da Silva, em recente “Nota de Repúdio”, o propósito de “confundir a figura do advogado com a do seu cliente. Colocam em dúvida a natureza dos serviços jurídicos prestados, apenas e tão somente por estar protegida pela cláusula do sigilo, desconsiderando por completo essa importante prerrogativa profissional essencial ao direito de defesa”.
A própria Procuradoria-Geral da República, em recente parecer exarado pela então Vice-Procuradora-Geral, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, e aprovado pelo então Procurador-Geral, Roberto Monteiro Gurgel Santos, descreveu que o sigilo profissional da advocacia está contido no “núcleo essencial dos princípios do contraditório e da ampla defesa”. Garantia que também se estenderia ao “advogado no âmbito do processo administrativo, das atividades de consulta preventivas de litígio e da arbitragem”. Isso porque o ordenamento jurídico, interpretado de forma sistêmica e calcado no princípio da especialidade – segundo o qual norma específica derroga a geral – não permite solução diversa do reconhecimento da extensão do sigilo profissional a todos os dados e informações obtidos mediante a prática de atividade privativamente reservada à advocacia: sejam eles ligados à postulação ao Poder Judiciário ou restrinjam-se à consultas ou assessoramento jurídicos.
Vivemos dias de presunção e de arrogância, e protestar contra elas, com coragem, é um dever que cada Advogado tem para com a sua própria consciência e para com os seus colegas.
Alguns preferem calar-se, suportar humilhações, reverenciar o autoritarismo, ao invés de, enobrecendo o exercício da Advocacia, fazer-se respeitar, sem visionários temores hierárquicos, como quer o nosso Estatuto. Tal procedimento, encoraja a prepotência, facilitando, costumeiramente, resvalar para o despotismo, os que não se curvam aos argumentos alheios ou não suportam a contradita.
Outrora, Cláudio, irritado com as razões de Júlio Gálico – como rememorou Ruy de Azevedo Sodré -, sumariamente, ordenou-lhe o afogamento no Tibre, a cujas margens advogara perante o imperador. Mas, nem por isso, a Advocacia sucumbiu. Ao contrário, tangida pelo sentimento mágico da solidariedade humana, sempre esteve e estará presente nos corações bem formados, sejam ou não de advogados. Esteve no coração do famoso Advogado francês Lachaud, como esteve, inquieta, irônica e incansável no espírito do filósofo Voltaire, ao defender, dentre muitas outras causas e pessoas, a memória de Jean Calas. Esteve, atuante e forte, no coração do Advogado norte-americano Clarence Darrow, na defesa de ativistas políticos, como agitou a alma do escritor Emile Zola, ao defender Dreyfus.
A Advocacia é elevado estado de espírito a ser cultivado, sem temores, em favor da sobrevivência das conquistas democráticas. Os déspotas a odeiam. Suprimem-lhe a liberdade, restringem-lhe as prerrogativas, buscam anulá-la, encurtando prazos processuais e editando leis abusivas. Ou, ainda, como nos dias atuais, procurando intimidá-la mediante o cerceamento de garantias duramente conquistadas. Consta das biografias mais livres de Napoleão, maldosamente, ter ele afirmado que se pudesse “mandaria cortar a língua de todos os advogados”.
Porém, Advogados e Advocacia permanecem insuperáveis, para falar em nome dos direitos alheios, tantas vezes quanto forem necessárias. Como dissera Maurice Garçon, “a defesa é um direito natural que constitui o último socorro a quem dele carece.” Para que sobreviva, entretanto, há de ser respeitada. E, se não o for, saberemos erguer as nossas vozes contra a tirania daqueles que nos querem calar ou intimidar.