Qual a consistência da nova sentença contra Lula
Professores de direito avaliam a decisão que condenou ex-presidente pela segunda vez, agora no caso do sítio de Atibaia
Lilian Venturini
07 Fev 2019
A juíza federal Gabriela Hardt condenou Luiz Inácio Lula da Silva a 12 anos e 11 meses de prisão na segunda sentença criminal contra o ex-presidente referente à Operação Lava Jato. Na decisão, assinada na tarde de quarta-feira (6), Hardt condena o petista por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Hardt assumiu em novembro de 2018 o processo que até então estava sob responsabilidade de Sergio Moro. Naquele mês ele deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro. O então juiz federal da 13ª Vara Federal de Curitiba já havia condenado Lula num processo parecido.
O ex-presidente era acusado pelos mesmos crimes, num caso envolvendo reformas de uma empreiteira em um tríplex em Guarujá, litoral paulista, para beneficiar o petista em troca de desvios em contratos da Petrobras, estatal de petróleo.
Lula cumpre pena de 12 anos e 1 mês de detenção desde abril de 2018, uma vez que a condenação foi confirmada em segunda instância. Ele está preso em uma cela da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
O teor da nova sentença é o mesmo, mas agora envolve um outro imóvel: um sítio em Atibaia, no interior paulista. Segundo a decisão, empreiteiras fizeram reformas no local como forma de pagamento de propinas a Lula, em retribuição a contratos fechados com a Petrobras.
A defesa do ex-presidente vai recorrer da decisão. Ainda não há previsão de quando os desembargadores vão receber e julgar o recurso. O petista é réu (ou seja, aguarda julgamento) em mais seis ações penais, por acusações de lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de influência e organização criminosa.
Os argumentos da juíza
A acusação e a conclusão da ação do sítio de Atibaia são semelhantes ao processo do tríplex do Guarujá, sentenciado por Moro em julho de 2017. Em resumo, Hardt entendeu que as empreiteiras Odebrecht, OAS e Schahin pagaram propinas a Lula por meio de obras realizadas no sítio entre 2010 e 2014.
Lula exerceu a Presidência entre 2003 e 2010. Logo, de acordo com a acusação feita pelo Ministério Público Federal, os acertos começaram quando o petista ainda estava no Palácio do Planalto. A sentença afirma que as reformas foram uma compensação relacionada a quatro contratos da Petrobras, em unidades da estatal no Paraná, em Pernambuco e no Rio de Janeiro.
R$ 1,02 milhão é o valor das obras realizadas no sítio de Atibaia, pagas pelas empreiteiras, segundo a sentença.
O sítio, embora registrado em nome de Fernando Bittar (amigo do ex-presidente), na verdade pertence a Lula, um proprietário oculto do imóvel, na versão da acusação. O uso do sítio pelo petista e por familiares foi comprovado na ação com base em mensagens sobre as reformas, notas fiscais, registros de visitas e depoimentos de delatores e testemunhas. De acordo com a juíza, parte das obras foi solicitada pelo próprio Lula, conforme depoimentos de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS.
O papel de Lula e o elo com a Petrobras
A exemplo da conclusão a que Moro chegou no caso tríplex, Hardt entendeu que o ex-presidente tinha papel importante no esquema de corrupção na Petrobras descoberto pela Lava Jato. O esquema, afirma a juíza, era usado para “garantir a governabilidade e a manutenção” do PT no poder.
O entendimento da juíza sobre a figura do ex-presidente no esquema de desvios serve de base para a condenação de Lula pelo crime de corrupção passiva. Este crime é definido assim pelo Código Penal: “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Na sentença, Hardt faz duas afirmações importantes:
- não há prova de que o valor pago em propina pelos contratos foi “empregado diretamente” para custear despesas de campanha ou pessoais; o rastreamento não seria possível, segundo a juíza, pela ocultação dos pagamentos
- não há como comprovar a participação específica de Lula em cada negociação realizada nos contratos de onde saiu o dinheiro usado para as obras no sítio
A participação direta de Lula no esquema, o chamado “ato de ofício”, é o ponto principal de discordância entre a defesa e a acusação e, agora, a sentença de Hardt. “Ato de ofício” é aquilo que o agente público fez, de fato, para receber a propina.
No Código Penal, essa expressão aparece como um critério de agravante da pena: “a pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional”.
Do ponto de vista investigativo, é possível comprovar a transferência de dinheiro. Já comprovar a contrapartida não é tão fácil, já que o acerto pode ter sido feito, por exemplo, verbalmente entre o agente público e o empresário, não havendo uma prova material (um e-mail ou mensagem de telefone) que ateste a existência do crime.
Hardt entende que basta que se “solicite” ou “receba” vantagem para se configurar a corrupção passiva. Para sustentar sua decisão, a juíza usa o entendimento de desembargadores do Tribunal Regional da 4ª Região, de Porto Alegre, na ação do tríplex e reconhece que o tema ainda não está claramente consolidado pelo Supremo Tribunal Federal.
Na sentença, Hardt diz não verificar o “ato de ofício” de Lula, mas acrescenta que o favorecimento à determinada empreiteira “era algo indiretamente realizado em razão do poder exercido” pelo petista.
“Comprovado ainda que o réu Luiz Inácio Lula da Silva teve participação ativa neste esquema, tanto ao garantir o recebimento de valores para o caixa do partido ao qual vinculado, quanto recebendo parte deles em benefício próprio. Tais verbas foram solicitadas e recebidas indevidamente em razão da função pública por ele exercida, pouco importando pelo tipo penal se estas se deram parcialmente após o final do exercício de seu mandato” (Gabriela Hardt juíza federal da 13ª Vara Federal de Curitiba, em sentença da ação sobre o sítio de Atibaia).
Advogado do ex-presidente, Cristiano Zanin Martins critica a ausência de provas concretas na sentença que comprovem a atuação de Lula no esquema de corrupção. Ele diz ainda que a juíza, a exemplo de Moro, recorre a uma fundamentação “retórica” para condenar o ex-presidente. Essas fragilidades, na avaliação da defesa, reforçam a queixa de que Lula é alvo de perseguição política.
A decisão, de acordo com Martins, desconsiderou provas e argumentos apresentados pela defesa, como depoimentos de delatores que não apontaram relação entre o dinheiro e contratos da Petrobras, e testemunhas que negaram ter tratado de propinas com Lula – casos de Emilio e Marcelo Odebrecht, pai e filho, respectivamente, o último ex-presidente da Odebrecht.
“Uma vez mais a Justiça Federal de Curitiba atribuiu responsabilidade criminal ao ex-presidente tendo por base uma acusação que envolve um imóvel do qual ele não é o proprietário, um ‘caixa geral’ e outras narrativas acusatórias referenciadas apenas por delatores generosamente beneficiados” (Cristiano Zanin Martins, advogado de Luiz Inácio Lula da Silva, em nota sobre a sentença da ação sobre o sítio de Atibaia).
Um dos problemas na sentença apontado pelos advogados é que a juíza chega a confundir um delator. Diz que Léo Pinheiro e José Aldemário são pessoas diferentes, quando na verdade são uma pessoa só: o ex-presidente da OAS que colabora com a Justiça e delatou Lula.
Duas análises sobre a sentença
Além de Lula, foram condenadas mais dez pessoas na ação do sítio. O Nexo entrevistou dois professores de direito a respeito da sentença e do entendimento atual sobre o “ato de ofício”. São eles:
- Fernando Castelo Branco, coordenador do curso de pós-graduação de direito penal, da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo
- Solon Linhares, professor adjunto da PUC-PR, doutor e pós-doutor em direito penal
Juridicamente, a condenação de Lula no caso do sítio é consistente? Por quê?
Fernando Castelo Branco: Ler uma sentença não é o mesmo que conhecer integralmente o processo. Pautado nessa cautela, me abstenho de fazer juízos de valor. É claro que a sentença precisa estar pautada num livre convencimento do juiz, mas sempre com uma base fundamentada num nexo causal entre a prova e o resultado.
A corrupção em si exige efetivamente um ato de ofício. Tem que haver um nexo causal entre o favorecimento (o ganho financeiro, material, seja ele qual for) e, consequentemente, esse ato de ofício realizado em prol daquele favorecimento.
Essa indeterminação [no caso Lula] é um drible numa exigência legal que é a essência do direito penal. Não pode formar uma convicção condenatória baseada em conjectura, baseada numa premissa não clara, não evidenciada, acerca de um efetivo ato de ofício.
Acho que Gabriela Hardt é autora de sentenças bem fundamentadas, muito embora eu tenha o direito de não concordar com a essência delas. Mas o que eu retiro de interpretações como essa, da forma de aceitação da corrupção passiva, é que ela é absolutamente inaceitável. Porque é basicamente uma presunção, sem esteio probatório.
Por não ter o esteio probatório de uma evidência clara do ato de ofício (reconheço que isso pode ser difícil de provar), cria-se uma alternativa doutrinária e a partir daí passa a ser a aceitação de uma verdade subjetiva.
Solon Linhares: É muito consistente, especialmente pelo uso das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal para justificar o aumento da pena. Sobre o crime de corrupção passiva, a sentença também está bem fundamentada principalmente por se tratar de um crime formal.
Corrupção passiva é um crime que se consuma com a mera prática do verbo. O verbo [no Código Penal] diz “solicitar”. Se o agente público solicitou essa vantagem indevida, usando a pretexto do cargo, direta ou indiretamente, o crime está consumado. Por mais que a vantagem indevida nunca seja paga.
É diferente de um caso de homicídio (um crime material) em que se precisa da morte da vítima para consumar o crime. No crime formal basta ter solicitado. A juíza Gabriela Hardt comprova a solicitação, o recolhimento e o destino do dinheiro.
O que se alega é que o agente tem que exigir a vantagem na condição do ato de ofício. Não. Esse ato de ofício pode ser “a pretexto de” algo, pelo uso indireto do cargo. Se eu sou presidente e comento “seria bom uma reforma nesse meu sítio”, é lógico que falo como presidente, mesmo estando num almoço informal, em família. Esse ato de ofício pode ser indireto, fora do contexto formal da atividade pública.
O argumento em torno do ‘ato de ofício indeterminado’, base das duas condenações para o crime de corrupção de Lula, está consolidado no Brasil? É amplamente usado?
Fernando Castelo Branco: Vem sendo mais e mais aceita essa doutrina, que é benevolente para os critérios da acusação, mas extremamente agressora para os ditames de um direito penal clássico. A presunção de inocência e o devido processo legal vedam esse lado de conjectura.
Talvez o mensalão tenha sido o primeiro processo de grande monta, se não o maior processo criminal brasileiro até a Lava Jato, em que se começou o alargamento dessas teorias em prol de uma facilitação para condenação. Na Lava Jato isso se consolidou.
Antigamente nós tínhamos um binômio, que era o alicerce de investigações, que eram a busca e apreensão e a interceptação telefônica. Hoje há uma terceira perna que é a Justiça negocial, por meio de uma delação premial [ou delação premiada].
É natural que o direito penal e o direito processual penal (que é a ferramenta instrumentalizadora do direito penal) acompanhem as evoluções ou involuções sociais. No estágio atual do Brasil e de todas essas questões trazidas na esfera criminal envolvendo grandes grupos políticos e empresariais, ficaria difícil que a Justiça negocial não fosse uma ferramenta de uso cotidiano. O que me preocupa é a forma de implementação dessa ferramenta.
Me parece que as autoridades públicas vêm fazendo um uso indiscriminado. A partir do momento que se colhe uma delação, precisa de elementos de prova que vão além da palavra do delator. E o que vemos normalmente é uma base probatória inexistente.
Solon Linhares: Esse entendimento quanto à aplicação do ato de ofício não consta claramente no Código Penal. Faz parte da interpretação da doutrina e ela já está bem consolidada tanto no TRF-4 e quanto na 5ª Turma do STJ [Superior Tribunal de Justiça], ambas com competência para julgar ações penais da Lava Jato.
Anteriormente tivemos poucas decisões nessa linha. A Lava Jato foi o marco das decisões e condenações por corrupção passiva. Mas já havia antes esse entendimento. Claro que há divergência, inclusive entre integrantes do Supremo, que exigem uma maior materialidade por parte do agente para se configurar o crime.