Opinião

PEC do trânsito em julgado em 2º grau cria mais problemas do que traz soluções

Revista Consultor Jurídico

29 de novembro de 2019

Por Alice Marie Freire Gaudiot

Em 20 de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição 199/2019, apresentada pelo deputado federal Alex Manente, que possibilita a prisão de réus após condenação em segunda instância[1]. O projeto propõe alterar os artigos 102 e 105 da Constituição Federal a fim de extinguir os recursos especiais e extraordinários e substituí-los pelo que o texto denomina “ação revisional extraordinária” e “ação revisional especial”, que só poderiam ser ajuizadas contra decisão transitada em julgado. Outra novidade é que, conforme ocorre hoje com o recurso especial, será necessário demonstrar o interesse geral das questões discutidas, e a norma prevê a criação de uma lei que estabelecerá os casos de inadmissibilidade da ação revisional especial[2].

A proposta de alteração da Constituição veio duas semanas após o amplamente divulgado julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 43 pelo Supremo Tribunal Federal, em que ficou decidido, em apertado placar de 6 a 5, que a execução da pena deverá ocorrer somente após o trânsito em julgado da ação[3]. A PEC, buscando contornar a decisão proferida pela Suprema Corte, propõe que o trânsito em julgado se dê quando esgotados os recursos em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, possibilitando que o réu comece a cumprir sua pena já em segunda instância.

É certo que existem, hoje, graves problemas no sistema Judiciário brasileiro, que não só recorrentemente levam à violação de garantias constitucionais do réu, mas também põem em xeque a crença da sociedade na prestação jurisdicional efetiva. Entretanto, as mudanças pretendidas pela PEC demonstram uma desconexão com a atual realidade de nossos tribunais, com potencial de agravar as adversidades que busca resolver, e inclusive ferem direitos e garantias previstas no artigo 5º da Constituição Federal, cláusula pétrea.

A execução imediata das penas seria uma solução num quadro em que houvesse segurança do acerto das decisões condenatórias proferidas pelo juiz singular de primeira instância, posteriormente confirmada por três desembargadores (podendo ser até cinco, caso o réu recorra para tanto). Foi, inclusive, o que o Supremo Tribunal Federal decidiu em 2016 (HC 126.292), permitindo a execução da pena depois de decisão condenatória que fosse somente confirmada (e não determinada) em segunda instância[4].

No entanto, a PEC não vem embasada com tal segurança. Primeiro pois o réu absolvido pelo juiz de primeira instância — aquele que teve maior contato com o processo —, mas cuja sentença foi posteriormente reformada em segundo grau para condená-lo, começará a cumprir imediatamente a pena, sem o devido exercício da ampla defesa ou do contraditório (artigo 5º, LV, da Constituição Federal). A situação é ainda mais preocupante para os casos em que o réu é julgado originariamente pelo tribunal de segunda instância, uma vez que não será necessária a confirmação do acórdão condenatório para que o acusado comece a cumprir a pena, em flagrante violação ao princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, LVII).

Há, ainda, que se considerar o elevado número de decisões que são reformadas pelas cortes superiores, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça: segundo pesquisa feita pela Folha de S.Paulo em outubro desse ano, em que foram analisados cerca de 38.000 recursos especiais, 37% foram providos total ou parcialmente[5]. Em outras palavras, a cada três decisões judiciais, uma é alterada pela corte. O alto número que ainda persiste faz com que a condenação em segunda instância perca a segurança jurídica necessária para legitimar o trânsito em julgado neste momento. Em suma, antes que se pretenda a prisão automática após a condenação em segunda instância, é necessário que se tenha segurança sobre a grande probabilidade de irreversibilidade dessa decisão — o que não é o caso atual.

Por outro lado, o Ministério Público, com as pretendidas mudanças, perderia seu direito de recorrer a tribunal superior para requerer a condenação do réu sentenciado em primeira instância, mas absolvido em segunda, uma vez que a Convenção Americana de Direitos Humanos garante que “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”, direito consolidado em nossa Constituição Federal por meio do princípio da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI).

Além disso, não se sustenta o argumento sobre como a defesa do réu supostamente apresentaria diversos recursos com o intuito meramente protelatório, objetivando a prescrição da pretensão punitiva. Isso porque, segundo o resumo “Pedidos da defesa concedidos em recursos criminais no STJ”, elaborado pela Coordenadoria de Gestão da Informação do próprio Superior Tribunal de Justiça, foi reconhecida a prescrição pleiteada pela defesa em somente 0,76% das decisões proferidas por aquela corte[6].

O motivo para isso é simples: o artigo 117 do Código Penal estabelece que a publicação de sentença ou acórdão condenatório interrompe o curso da prescrição, reiniciando sua contagem. Assim, por exemplo, caso o réu seja condenado à pena mínima de homicídio (seis anos), somente haverá a prescrição após decorridos 12 anos da data da sentença (artigo 109, III, com correspondência com o artigo 110, parágrafo 1º, ambos do Código Penal). O crime de lavagem de dinheiro, por sua vez, prescreverá depois de, no mínimo, oito anos, podendo chegar a 20.

Ao contrário da crença popular na morosidade das Cortes Superiores, vale lembrar que 63% dos recursos interpostos perante o Superior Tribunal de Justiça levam até um ano para transitar em julgado. Esse número aumenta para 77% dos casos no Supremo Tribunal Federal. Apenas 10% dos processos no Superior Tribunal de Justiça levam mais de três anos para serem julgados, percentual que desce para menos de 5% no Supremo Tribunal Federal[7]. Por outro lado, a Justiça estadual de primeiro grau leva, em média, quatro anos e quatro meses para proferir sentença[8].

Por fim, ao invés de diminuir a carga de trabalho das cortes superiores, justificativa trazida pela PEC, as mudanças sugeridas irão, em realidade, aumentar o número de recursos interpostos e, consequentemente, a morosidade judicial. Conforme o próprio projeto da PEC informa, o índice de recursos interpostos perante corte inferior e julgados por corte superior vem diminuindo, havendo uma queda de 9,3% em 2011 para 6,8% em 2016[9].

Com o trânsito em julgado em segunda instância e, portanto, a imediata execução da pena (ainda que o réu tenha sido absolvido em primeiro grau), surgirá uma necessidade que não existe hoje: a interposição urgente de Habeas Corpus, para que o acusado não sofra as consequências de uma decisão que poderá vir a ser reformada.

Além das questões acima expostas, há ainda que se considerar as lacunas abertas pela proposta. Ao não definir quais são os casos de inadmissibilidade da ação revisional especial, há duas hipóteses: ou o Superior Tribunal de Justiça estabelecerá os requisitos por conta própria, agindo em violação ao princípio da legalidade, ou a corte se verá obrigada a conhecer todas as ações que lhe são ajuizadas. Há, ainda, o questionamento sobre o que configuraria “repercussão geral” – a inobservância de súmula, por exemplo, seria o suficiente para admitir a reforma do acórdão condenatório?

Não se nega a existência dos problemas que a PEC busca abordar, mas se questiona a forma eleita para combatê-los. Estabelecer o trânsito em julgado em segunda instância não fará com que os processos tramitem de forma mais rápida nem mais segura, mas apenas antecipará uma condenação ainda passível de reforma. É mais benéfico à sociedade e ao Judiciário que, ao invés de alterar os artigos 102 e 105 da Constituição Federal, comece a se colocar em prática proposta trazida no bojo da justificativa da PEC: que haja “a devolução da carga de responsabilidade institucional às instâncias ordinárias, que passarão por escrutínios maiores do que aqueles aos quais estão atualmente expostos”.

Referências: [1] Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/20/ccj-da-camara-da-aval-a-proposta-que-permite-prisao-apos-condenacao-em-segunda-instancia.ghtml>. Acesso em: 21/11/2019.

[2] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=BD191CF0B90AF556F8EB0803FFE97F3B.proposicoesWebExterno2?codteor=1835285&filename=PEC+199/2019>. Acesso em: 21/11/2019.

[3] Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/ao-vivo/stf-prisao-segunda-instancia-julgamento>. Acesso em: 21/11/2019.

[4] STF, HC 126.292, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 17.02.16.

[5] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/uma-em-cada-tres-decisoes-judiciais-em-segunda-instancia-e-alterada-no-stj.shtml>. Acesso em: 21/11/2019.

[6] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/2/art20180202-06.pdf>. Acesso em: 21/11/2019.

[7] Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/maioria-dos-recursos-apos-2a-instancia-e-julgada-em-ate-1-ano-no-stj-e-no-supremo.shtml>. Acesso em: 21/11/2019.

[8] Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/quanto-tempo-a-justica-do-brasil-leva-para-julgar-um-processo/>. Acesso em: 21/11/2019.

[9] Justiça em números. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/justica-numeros-2017.pdf>. p. 84-85. Acesso em: 21/11/2019.

Alice Marie Freire Gaudiot é advogada criminal do escritório Castelo Branco Advogados Associados, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Universidade de Coimbra e graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.