São Paulo, 22 de maio de 2014.

 

Referência: Proposição no 49.0000.2013.013476-1/COP.

Origem: Membros Honorários Vitalícios Márcio Thomaz Bastos, Mário Sérgio Duarte Garcia e Ophir Cavalcante Júnior.

Assunto: Sugestão de Anteprojeto de Provimento. Diretrizes. Lei de Lavagem de Capitais.

Relator: Conselheiro Federal Aldemario Araujo Castro (DF).

 

PARECER

O eminente Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Marcus Vinícius Furtado Coêlho, encaminhou ofício ao Centro de Estudos da Sociedade dos Advogados – CESA, solicitando manifestação sobre proposição de anteprojeto de provimento, formulada pelos eminentes Membros Honorários Vitalícios Márcio Thomas Bastos, Mário Sérgio Duarte Garcia e Ophir Cavalcante Júnior (Proposição no 49.0000.2013.013476-1/COP).

Referida proposição versa sobre recomendações à Advocacia a respeito de sua atuação profissional, em especial no tocante ao cumprimento das obrigações elencadas nos artigos 10 e 11 da “Lei de Lavagem de Capitais” (Lei no 9.613/98), que sofreu recentes alterações pela Lei no 12.683/2012.

Isso porque, a atuação do advogado, embora não esteja expressamente prevista, poderia ser enquadrada genericamente no artigo 9o, parágrafo único, XIV, da “Lei de Lavagem”, mormente quando da prestação de atividade de consultoria.

Adotando-se esse entendimento, dentre os principais deveres que obrigariam os profissionais de advocacia, destacamos que passaria a haver necessidade de identificação e comunicação de atividade suspeita de “lavagem de dinheiro”, por parte de clientes, ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF ou ao órgão fiscalizador da atividade.

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Não se pode olvidar que as alterações introduzidas à “Lei de Lavagem” buscam alinhar o ordenamento jurídico pátrio ao estrangeiro, principalmente com relação aos países europeus e às modernas recomendações dos organismos internacionais, uma vez que o crime de branqueamento de capitais, não raro, se apresenta como um delito transnacional.

Nesse contexto, é inegável que a alteração legislativa veio revestida de boas intenções.

Por outro lado, a observância das novas disposições normativas, no caso específico da atividade dos advogados, depende de uma análise integrativa do ordenamento jurídico, a fim de evitar as tão corriqueiras violações às garantias fundamentais.

Posto isso, vale destacar que a matéria apresentada à discussão foi amplamente debatida por este Centro de Estudos, em especial por seu Comitê Penal, e contou, inclusive, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo.

Com a devida vênia ao exposto pelos ilustres propositores, entendemos que a criação de provimento pela Ordem dos Advogados do Brasil, regulamentando a atuação da advocacia às exigências contidas na Lei de Lavagem, mostra-se absolutamente desnecessária.

Isso porque a situação sui generis dos advogados encontra-se suficientemente regulamentada em normas específicas, que tratam a preservação do sigilo profissional como fundamento de sua própria atuação, afastando, assim, a necessidade de cumprir as obrigações trazidas pela “Lei de Lavagem”.

Consoante os dizeres do artigo 133 da Constituição Federal:

“O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

A inviolabilidade de que trata o dispositivo constitucional, conforme precisa lição de José Afonso da Silva, não pode ser interpretada como um privilégio profissional, mas, sim, como proteção ao cidadão que procura o advogado, confiando a ele a defesa de seus direitos mais relevantes (Curso de Direito Constitucional Positivo, 15a ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 581).

Com o intuito de contribuir para com os estudos internos promovidos pelo CESA, formulamos, à época da edição da lei no 12.683/2012, consulta ao eminente jurista Prof. Carlos Mário da Silva Velloso, para que avaliasse as eventuais imprecisões do texto legal, especialmente no que concerne à inclusão, ou não, dos advogados e das sociedades de advogados na relação de “pessoas sujeitas ao mecanismo de controle”, principalmente nos casos previstos pelo novo artigo 9o, parágrafo único, XIV, e alíneas, da referida lei (documento anexo, que acompanha e integra essa manifestação).

Em seu  bem lançado parecer, o Prof. Carlos Velloso esclareceu que:

“(…) a Constituição, atribuindo à advocacia a qualidade de indispensável à administração da Justiça, não reduz a inviolabilidade do advogado à sua atuação perante o Judiciário, vale dizer, não limita essa prerrogativa ao desempenho no processo judicial. Certo é que a Constituição garante ao advogado a inviolabilidade por atos e manifestações no exercício da profissão, que não se restringe, sabemos todos, à atuação no processo judicial. Com efeito, hoje, com a complexidade da vida moderna, o advogado é chamado a prestar assistência profissional nos mais diversos setores, evitando até mesmo que conflitos possam se converter em demandas judiciais. E, em toda sua atuação profissional, está o advogado, por expressa determinação da Constituição, protegido pela inviolabilidade constitucional” (p. 21).

Como forma de garantir a efetivação da diretriz constitucional, o artigo 34, VII, do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei no 8.906/94), classifica como infração disciplinar a violação, sem justa causa, do sigilo profissional.

O próprio Código de Ética e Disciplina da OAB reservou espaço importante de seu texto para tratar da relevância do sigilo profissional (artigos 25 a 27).

Na seara penal, a necessidade de observância do sigilo profissional por parte do advogado também é patente, na medida em que o Código de Processo Penal veda a possibilidade dele prestar depoimento, em virtude dos segredos que lhe são confiados em razão de sua profissão (art. 207), e que o Código Penal, em seu artigo 154, tipifica criminalmente a conduta do advogado que, sem justa causa, revelar segredo que tenha tomado conhecimento em razão de seu mister.

Nesse contexto, resta absolutamente claro que a atuação profissional dos advogados está suficientemente regulamentada por legislação específica, de modo que a regra genérica trazida pela lei no 12.683/12, que, em tese, poderia enquadrar os serviços advocatícios, resta afastada pelo princípio da especialidade.

Conforme explica o Prof. Carlos Velloso,

“Constitui regra primária de hermenêutica que a lei geral não prevalece sobre a especial, nem revoga, se lhe é posterior. No caso, a Lei no 8.906/94, que disciplina o exercício da advogado, é especial em relação à Lei no 9.613/98, que cuida da lavagem de dinheiro. Logo, não podem as regras desta última revogar garantias previstas no Estatuto da Advocacia. Assim, apenas as exceções neste contempladas podem ser invocadas para a não observância do sigilo profissional” (parecer anexo, p. 30-1).

Além da legislação específica apresentada, que por si só mostra-se suficiente para afastar a incidência da regra geral, a “Lei de Lavagem” não faz referência, de maneira expressa, à classe dos advogados, sendo certo, também por esse motivo, que sua aplicação, nesses casos, é descabida.

Nota-se, ademais, uma tendência que também é oriunda do ordenamento estrangeiro, de dividir a advocacia em duas classes de profissionais: advogados de representação contenciosa e advogados de operações.

O advogado de representação contenciosa está envolvido diretamente na defesa de seu cliente, seja na esfera judicial, seja na esfera extrajudicial, ou ainda em consultoria, desde que relacionada com determinado litígio.

O advogado de operações, por seu turno, seria aquele que contribui com seu conhecimento jurídico para a efetivação de operações financeiras ou similares. Para esses, o cumprimento das imposições dos artigos 10 e 11 da “Lei de Lavagem” seria obrigatório.

Apesar de haver uma tentativa de distinção entre as duas “classes” de advogados, entendemos que a regra constitucional do sigilo não pode ser aplicada a uns e não a outros, conforme sua atuação.

Devemos consignar, a título de esclarecimento, que o entendimento exposto pelo Prof. Pierpaolo Bottini, em artigo que fez juntar ao processo de proposição (fls. 16-27), foi aprimorado na última edição de sua obra Lavagem de Dinheiro – Aspectos penais e processuais penais (Revista dos Tribunais, 2a ed., São Paulo, 2013), escrita em conjunto com Gustavo Henrique Badaró.

Em consonância com nossa opinião, aqueles autores indicam três hipóteses em que a atuação do advogado não comporta relativização de sigilo profissional:

(i) advogados togados, assim denominados aqueles que representam clientes em contencioso judicial ou extrajudicial; (ii) advogados de consultoria jurídica para litígios, que prestam consultoria ou proferem pareceres voltados especificamente a litígios judiciais ou extrajudiciais atuais ou futuros; (iii) advogados de consultoria ou assessoria jurídica estrita, que analisam a situação jurídica do cliente ou da operação por ele pretendida, limitando-se à análise ou aconselhamento jurídico, sem relação direta com um litígio” (obra citada, p. 138).

Conforme o atual entendimento dos respeitados autores, apenas no caso de o advogado atuar em atividades que não guardam relação com a advocacia haverá dever de informar as autoridades quando incorrer nas hipóteses previstas na lei no 9.613/98.

Nessa caso, por óbvio, o advogado não estaria acobertado pelas garantias da profissão. Seriam, a seu ver,

profissionais de consultoria ou operação extrajurídica, caracterizados como aqueles que assessoram ou colaboram materialmente para operações financeiras, comerciais, tributárias ou similares, sem que tal se limite à análise jurídica (ex. advogado mandatário para atividades extraprocessuais, gestor de fundos, analista financeiro, contador” (idem, p. 138).

Entendemos que a divisão pretendida por alguns, que criaria, para certos profissionais, obrigação de comunicar atividades suspeitas de seus clientes, nada mais é do que uma forma de burlar o sigilo profissional, uma vez que o advogado que colabora com seu conhecimento jurídico para a consolidação de operações de caráter financeiro, por exemplo, ainda que sem qualquer relação com um processo ou litígio, também exerce atividade consultiva acobertada pelo referido sigilo.

Pensar de maneira diversa, além de violar frontalmente a legislação existente, estaria conferindo aos advogados a qualidade de auxiliares do Poder Público na persecução penal.

Ora, não se pode admitir que o advogado se converta em policial, em delator, pois, nesse caso, o fundamento básico da relação com seu cliente – a confiança – estaria irremediavelmente abalado, com nefastas consequências a toda sociedade:

“É inaplicável ao advogado a obrigação de delatar o seu cliente. Se tal obrigação existisse, ou se fosse possível ao advogado delatar quem o procurou para a sua defesa, seria ela, a obrigação de delatar, odiosa, arbitrária, ilegítima sob o ponto de vista constitucional, porque, sem dúvida, constituiria grave ofensa à garantia constitucional à ampla defesa, assim como violência ao devido processo legal (C.F., art. 5o, LV). Vejam o absurdo, o advogado procurado para fazer a defesa do indivíduo deveria delatá-lo, denunciá-lo aos órgãos de repressão. Tenho dúvida se o nazifascimo ou o nelismo stalinista chegariam a tanto” (Prof. Carlos Velloso, parecer anexo, p. 34).

Ressalte-se, de outro lado, que o sigilo profissional não confere ao advogado permissão para cometer o delito de “lavagem” ou auxiliar no seu cometimento, situações em que deverá responder criminalmente, seja como coautor, seja como partícipe do evento criminoso:

“Por óbvio que a imunidade conferida ao advogado não constitui um bill of indemnity a garantir-lhe proteção em toda e qualquer situação, pois não ampara os excessos cometidos que ultrapassem os limites do exercício da atividade profissional e devem por isso mesmo, ser coibidos disciplinarmente pela Ordem dos Advogados, em regular procedimento ético-disciplinar” (Prof. Carlos Velloso, parecer anexo, p. 23).

Nesse ponto, vale destacar que o próprio Código de Ética e Disciplina, em seu artigo 20, dispõe que o advogado deve abster-se de patrocinar causa que contraria a ética e a própria lei.

Logo, a lei interna – já existente – mostra-se suficiente para orientar os advogados quanto às inovações trazidas pela “Lei de Lavagem”, visto que proíbe a participação do advogado na conduta que se pretende inibir, na hipótese em que ele vislumbrar que possa ser utilizado como instrumento para a prática do ilícito.

Inatacável, a nosso entender, portanto, a conclusão alcançada pelo Prof. Mario Velloso, em seu judicioso parecer, corroborando os estudos elaborados no âmbito do CESA:

“Ao contrário das Diretrizes da Comunidade Europeia, a Lei no 9.613/98 não faz referência expressa ao advogado no inciso XIV de seu art. 9o. Assim, deve ela ser interpretada em consonância com o art. 133 da Constituição e com o Estatuto da Advocacia, Lei 8.906, de 1994, de modo a excluir o advogado do âmbito de sua incidência, quando no regular e legítimo exercício da advocacia”.

Finalmente, não se pode olvidar, como ressaltou o Conselheiro Federal Guilherme Octávio Batochio, em seu alentado voto acerca da matéria, que

“a questão já foi enfrentada por este Conselho Federal em três oportunidades anteriores (Comissão de Estudos Constitucionais, Órgão Especial e Conselho Pleno), tendo ficado decidido que o advogado está desobrigado de comunicar atividades suspeitas de seu cliente.

Encaminho meu voto, pois, no sentido de reafirmar esse entendimento e deixar assente que o advogado não é – e nem pode ser – sujeito ao mecanismo de controle de que fala a lei sob comento, estando, de acordo com o direito positivado, excluído daquelas obrigações, sendo absolutamente desnecessárias a instituição, no âmbito desta Entidade, da aventada “Comissão Nacional de Prevenção à Lavagem de Dinheiro” e as providências elencadas nos artigos 10, inciso IV, 11, inciso III e 14, § 1º, da Lei nº 9.613/98”.

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Assim, por todo o exposto, com a devida vênia dos ilustres propositores, entendemos que a elaboração do provimento proposto mostra-se inteiramente desnecessária, uma vez que os advogados não devem se submeter às obrigações previstas nos artigos 10 e 11 da lei no 9.613/98, pois sua atuação está suficientemente regulamentada pela Constituição Federal e por legislação específica, que impõe o respeito ao sigilo profissional.

É o parecer.

 

Fernando Castelo Branco

Diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA

 

Frederico Crissiúma de Figueiredo

Comissão de Direito Penal do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA