Após STF liberar imagens, Bolsonaro citou legislação que prevê prisão para quem divulga gravações de forma indevida. Mas, para especialistas, a regra não se aplica pois os registros tornados públicos não tratam da vida privada do presidente.

Por G1 e TV Globo

24/05/2020

 

Dois dias depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) tornar público o vídeo da reunião ministerial do governo Bolsonaro, o presidente da República publicou em uma rede social, na manhã deste domingo (24), trecho da Lei do Abuso de Autoridade que prevê prisão para divulgação indevida de gravações.

Mas juristas ouvidos pelo G1 e pela TV Globo dizem que a vedação citada por Bolsonaro não se aplica ao vídeo da reunião. Isso porque ela trata da exposição da vida privada ou da intimidade das pessoas, e que esse não é o caso do vídeo da reunião ministerial.

O vídeo faz parte da investigação sobre a possível tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, e foi tornado público por decisão do ministro Celso de Mello, relator do inquérito.

O ministro liberou tanto a íntegra do conteúdo do vídeo quanto a transcrição da reunião. Celso de Mello somente não permitiu a divulgação de “poucas passagens do vídeo e da respectiva degravação nas quais há referência a determinados Estados estrangeiros”.

Bolsonaro divulgou o seguinte texto: “Divulgar gravação ou trecho e gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado: pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.

Veja, abaixo, o que dizem os juristas.

Thiago Bottino

Para Thiago Bottino, professor de direito da FGV-Rio, se a intenção do tuíte do presidente da República foi relacionar o crime do artigo 28 da Lei 13.689/2019 com a decisão do ministro Celso de Mello em dar publicidade ao vídeo da reunião do dia 22 de abril, Bolsonaro está enganado por três motivos.

“O primeiro motivo é que a nova Lei de Abuso de Autoridade protege divulgação de gravações que exponham a intimidade de um investigado. Uma conversa telefônica é uma comunicação privada, particular, bem diferente de uma reunião ministerial com mais de 20 pessoas, onde todos sabem que estão sendo gravados e filmados. Tratava-se de uma atividade pública, na qual ninguém estava expondo sua intimidade ou tratando de sua vida pessoal, mas tendo uma reunião de trabalho na condição de funcionários públicos. Sabiam que estavam sendo filmados justamente para que eventualmente houvesse um controle público posterior sobre essa atividade”, afirma.

“A publicidade é a regra na atividade pública e essa reunião só deveria ser mantida em sigilo caso tivesse sido classificada como reservada, secreta ou ultrassecreta (na forma da Lei 12.527/2011). Ou seja, se o próprio governo não considera necessário esse sigilo, prevalece a regra da publicidade dos atos públicos”, diz.

“Em segundo lugar, a divulgação integral da gravação (com exceção das referências a Estados estrangeiros) impede a descontextualização das falas. Um exemplo que me ocorre é a divulgação de um trecho da conversa telefônica entre Lula e Dilma, em 2016, pelo ex-juiz Sergio Moro. Foi divulgado apenas um trecho isolado, ao passo que conversa integral poderia permitir uma outra interpretação daquela conversa. Além disso, o vídeo divulgado pelo ministro do STF era uma prova válida, outra diferença em relação ao então juiz Sergio Moro, que divulgou uma gravação telefônica sabidamente ilícita (porque obtida depois de expirado o prazo de interceptação).”

“O terceiro motivo diz respeito às manifestações dos eventuais investigados. Tanto o ex-juiz Sergio Moro (por meio de petição do seu advogado) como o presidente da República (por meio de petição do advogado geral da União) foram favoráveis à divulgação integral do material. Logo, se se manifestam favoravelmente à publicidade, não podem posteriormente afirmar que sua intimidade foi atingida”, conclui.


 

Acácio Miranda da Silva Filho

Para Acácio Miranda da Silva Filho, mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Espanha), a decisão do ministro não se aplica, pois o trecho citado pelo presidente trata de exposição indevida da honra ou da vida de alguém, o que não era o caso da reunião ministerial.

“No que tange a menção à nova Lei do Abuso de Autoridade, não há qualquer possibilidade de tipificação da conduta do decano do STF, uma vez que o artigo em comento exige a exposição indevida da honra ou da vida privada do investigado.”


 

André Luiz Callegari

André Luís Callegari, advogado criminalista e professor de Direito Penal no IDP-Brasília, diz que Bolsonaro fez uma interpretação da lei que não se enquadra na realidade.

“Como se trata de investigação preliminar requerida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e autorizada pelo STF não se pode afirmar que não há relação com a prova. Somente a instrução processual é que poderá demonstrar essa relação. O ministro relator não autorizaria referida divulgação se julgasse desvinculado com a prova necessária para a instrução. De outro lado, a divulgação não tem relação com a intimidade ou vida pessoal ou dano à imagem do presidente, mas relação com o procedimento necessário para esclarecer os fatos.”


 

Daniel Sarmento

O professor de direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Daniel Sarmento ressalta que não há privacidade em uma reunião de ministros de Estado.

“Se tem direito à privacidade sobre aquilo que é privado”, diz Sarmento. “Não foram veiculadas conversas íntimas do presidente com sua esposa. O que divulgou foi uma reunião com seu ministério.”

O especialista critica o “tom ameaçador contra o Supremo” da postagem de Bolsonaro. Ele diz que há um “subtexto claro” que acusa Celso de Mello de ter cometido um crime, o que ele considera ser absurdo.


 

Fernando Castelo Branco

Coordenador do curso de pós-graduação de direito penal da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo, o professor Fernando Castelo Branco diz que uma eventual divulgação fragmentada do vídeo levaria a uma falta de compreensão geral dos fatos que envolvem a reunião.

O professor afirma ainda que é direito do presidente Jair Bolsonaro se “insurgir” contra a divulgação e que o tema pode eventualmente ser analisado pelo próprio STF e pela Procuradoria Geral da República.

No entanto, para Castelo Branco, o contexto não envolve a intimidade do presidente da República, uma vez que era uma reunião ministerial, no Palácio do Planalto.

“Acho que é direito do presidente se insurgir contra isso e pedir apuração. […] Mas o que está se buscando é entender os fatos. Não vejo como o ato, de imediato, como abuso de autoridade automaticamente, acho que não. Isso deve ser fator de interpretação, mas a divulgação fragmentada do vídeo levaria a uma falta de compreensão geral dos fatos”, diz.


 

Marcelo Bozzini

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Marcelo Bozzini, a divulgação do vídeo da forma como foi feita pelo ministro Celso de Mello tem respaldo da Constituição, que prevê que os processos sejam públicos.

“A divulgação da prova guarda total relação com a publicidade do processo, como consta no artigo 93, inciso IX da Constituição”


 

Patrícia Vanzolini

Patricia Vanzolini, professora de direito penal do Mackenzie, diz que a lei visa a preservar a honra de quem está sendo investigado formalmente. Ela lembra que este artigo foi colocado em discussão por conta de vazamentos de áudios e vídeos em investigações. Entretanto, para a especialista, há a possibilidade de que, por interesse público, essa proteção seja sopesada e lembra que isso depende de uma análise do juiz do caso.

“Nenhum direito é absoluto, é possível, dependendo da justificativa do juiz, que esse direito a intimidade seja afastado”, explica Vanzolini.

Ela afirma que o tipo penal apresentado pelo presidente, de que divulgar trechos de gravação sem relação com a prova que tenha que produzir, não pode ser utilizada pela esse processo. Isso porque, segundo a especialista, o que foi apresentado no vídeo do ministro Celso de Mello tinha relação com a prova que que se tinha visto.

“Esse trecho já tornaria o artigo inaplicável”, diz Vanzolini. “E ele segue: ‘expondo a intimidade ou a vida privada’, o que se passava na reunião não era vida privada de ninguém. A reunião não tinha nem sido classificada como reunião secreta.”


 

Wálter Maierovich

Para Wálter Maierovitch, a lei brasileira protege a atuação do magistrado ao longo de um processo, uma vez que ele tenha justificado e explicado suas decisões. É o que no meio jurídico se chama de princípio do livre convencimento motivado.

“O ministro Celso de Mello fundamentou exaustivamente sua decisão. Foram laudas e laudas de explicações e referências constitucionais”, diz ele, referindo-se à derrubada do sigilo da reunião ministerial do dia 22 de abril.


 

Paulo Bueno

Paulo Amador da Cunha Bueno, advogado criminalista pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Universidade de Coimbra, diz que a “postagem, sem tecer qualquer comentário sobre sua eventual incidência ou aplicação em relação à divulgação do video da reunião ministerial, deixa grande margem a interpretações”.

“Ao que parece, talvez pretendesse afirmar a incidência do tipo penal em relação ao sr. Sergio Moro, em razão da divulgação haver sido determinada após pedido formalizado pela defesa do ex-ministro. Em sendo esse o direcionamento subliminar da postagem, não nos parece que o exercício do direito de petição possa, em alguma hipótese, ser confundido com abuso de autoridade. A uma porque não se conhecesse na legislação brasileira limites ao direito de petição, como consequência do princípio do amplo acesso à justiça; a duas porque o peticionário não exerce mais qualquer autoridade para que dela pudesse abusar.”

“Se, por outro lado, a mensagem subliminar se dirigia ao ministro Celso de Mello, cabe analisar o conteúdo da decisão do mesmo, que aponta para o interesse público. A decisão em si é bastante discutível, na medida em que a publicização de reuniões estratégicas de governo guardam certo grau de sigilo. Ainda que se interprete, e há argumentos válidos nesse particular, que neste momento não haveria necessidade da publicização do vídeo, não nos parece ter havido propriamente abuso por parte do ministro Celso de Mello em uma perspectiva estritamente penal. É muito delicada a ‘transposição’ de um ato de caráter jurisdicional para um ato de abuso de autoridade.”


 

Guilherme Peña

Paulo Guilherme Peña, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense, diz que o caso não configura invasão ou abuso de autoridade.

“Na verdade, enquanto se referir ao inquérito que tramita no STF não parece haver invasão e muito menos a possibilidade de abuso de autoridade. É importante lembrar que na democracia se pressupõe diálogo. Enquanto houver diálogo entre as instituições, uma conversa amistosa entre os três poderes, segue a regra do jogo democrático. O que não pode existir é ruptura da estrutura democrática. À medida que o STF chamar para se manifestar, com o processo legal, não parece haver invasão.”