Autores: Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro

A Lei 12.529/11, ao criar o “Super CADE” – órgão que unificou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE) – conferiu-lhe “superpoderes”, sendo a autorização para inspeções administrativas o mais polêmico, conforme veremos a seguir.

Com o propósito de ampliar a punição de práticas anticompetitivas, este instrumento permite o ingresso de agentes do “Super CADE” em estabelecimentos de empresas alvos de investigação, concedendo-lhes carta branca para inspecionar “estoques, objetos, papéis de qualquer natureza, assim como livros comerciais, computadores e arquivos eletrônicos”.

Autorizada por mero despacho fundamentado de membros do próprio órgão – prescindindo, portanto, de ordem judicial –, a inspeção administrativa outorga, ainda, ao agente, o poder de extrair ou solicitar cópias de quaisquer elementos inspecionados que possam ser utilizados como prova para futuras sanções administrativas.

Cabe ressaltar que, caso a empresa impeça, obstrua, ou de qualquer outra forma dificulte a realização da inspeção, estará sujeita ao pagamento de multa de até 400 mil reais.

Ainda que a intenção do Congresso Nacional tenha sido nobre – facilitar a obtenção de provas diretas da prática de cartel –, é flagrante a inconstitucionalidade do instituto da inspeção administrativa.

Isso porque restrições aos direitos e garantias fundamentais, dentre os quais a inviolabilidade da casa e de dados, devem ser respaldadas em expressa autorização constitucional.

A Constituição Federal estabelece, no artigo 5º, inciso XI, que a casa – e, por interpretação doutrinária e jurisprudencial, também o espaço em que se exerce atividade profissional – “é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Além disso, a inspeção envolve a verificação e eventual extração de cópias de dados da empresa protegidos por sigilo, e cujo acesso também está
vinculado à ordem judicial, nos termos do artigo 5º, inciso XII, da Carta Magna.

Referidos mandamentos constitucionais deixam claro a indeclinável necessidade de ordem judicial – salvo casos excepcionais de flagrante delito, desastre, ou prestação de socorro – que autorize a violação, prerrogativa que não pode ser usurpada por membros do “Super CADE”.

Por essa razão, o instituto da inspeção administrativa já é objeto de ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Partidários da medida alegam que tem sido muito comum a divulgação, na imprensa, de suspeita de cartéis. Alertados sobre uma possível investigação, dirigentes de empresas envolvidas livrar-se-iam de provas da prática criminosa antes da obtenção e execução do mandado judicial de busca e apreensão, prejudicando, assim, o andamento das investigações.

Desta forma, segundo eles, apenas o elemento surpresa da inspeção administrativa garantiria o sucesso na obtenção das provas e, consequentemente, de possíveis condenações.

Afirmam, ainda, absurdamente, que a inspeção realizada pelos agentes do “Super CADE” não se confunde com a busca e apreensão prevista no Código de Processo Penal, esta sim decorrente de determinação judicial, já que na inspeção não há apreensão propriamente dita, mas tão somente a extração de cópias dos documentos.

Ainda que, aparentemente, menos atentatória, a obtenção de cópias de documentos protegidos pelo sigilo e pela inviolabilidade do recinto onde estão guardados também fere frontalmente os preceitos constitucionais elencados.

Se tais documentos comprometedores, sejam eles originais ou cópias, têm a finalidade de produzir prova em processo administrativo, poderiam servir, como provas emprestadas – aquelas que, produzidas em um processo, podem ser aproveitadas em outro –, para instruir futuros processos judiciais.
Ainda que, à primeira vista, possa parecer uma boa forma de garantir a aplicação da lei penal, cabe lembrar que a utilização das evidências obtidas por meio da inspeção administrativa violaria o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal).

Natural, portanto, que qualquer dessas esferas esteja resguardada pelo devido processo legal.

Assim, é indispensável que a “inspeção” seja decorrente de mandado de busca e apreensão, garantindo que o princípio basilar do devido processo legal – no qual estão contidos todos os outros princípios processuais – não seja maculado.

É sabido que, à medida que se intensifica o afã investigativo do Estado, na tentativa de minimizar a sensação de impunidade, avolumam-se perigosamente situações de ilegalidades e abusos.

Não se discute, aqui, portanto, a importância das provas obtidas no interior das empresas para detecção de práticas anticompetitivas.

O que não se pode admitir, sob este argumento, é a burla à Constituição, desrespeitando-se os direitos fundamentais nela previstos. A inspeção administrativa, nos moldes propostos, constitui evidente violação aos princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, basilares do Estado democrático.

Fernando Castelo Branco, Advogado criminal, Professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Coordenador do Comitê de Direito Penal do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.

Fernanda de Almeida Carneiro, Advogada criminal, Pós graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.