Autores: Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro

Estima-se que atualmente existam entre US$ 7 e US$ 12 trilhões depositados nos inúmeros paraísos fiscais espalhados ao redor do mundo, como a Suíça, Mônaco, Ilhas Cayman e Liechestein.

Diante da possibilidade de reaver parcela do valor mantido por brasileiros, foi apresentada, em 2003, a primeira proposta nacional de anistia fiscal e penal para pessoas físicas e jurídicas que repatriassem seus recursos.

De autoria do então deputado federal Luciano Castro (PR/RR), o Projeto de Lei nº 113 de 2003 autorizava o reingresso de qualquer recurso remetido ilegalmente ao exterior mediante tributação, pelo imposto de renda, à alíquota de 5%. Quem optasse pelo repatriamento não seria obrigado a declarar a origem dos recursos à Receita Federal, que manteria o sigilo total da identidade do optante.

Naquele mesmo ano, porém, foi instaurada a conturbada e polêmica CPI do Banestado, que investigou enorme esquema de evasão de divisas no Brasil, e, diante do clamor social, a tramitação da proposta legislativa acabou sendo protelada.

Segundo apuração dessa CPI, cerca de R$ 150 bilhões eram mantidos ilegalmente por brasileiros no exterior. Esta vultosa quantia estimulou seu relator, o deputado federal José Mentor (PT/SP), a retomar a discussão abortada em 2003, com a apresentação do Projeto de Lei nº 5.228 de 2005. “O dinheiro já existe, só vai mudar o país em que está depositado. Vai gerar riqueza aqui, em vez de gerar riqueza em outro lugar”, argumentou Mentor, justificando seu projeto.

Após anos sem movimentação, a crise econômica mundial de 2009 acelerou a tramitação do PL nº 5.228/05 (atualmente apensado ao PL nº 113/03): em novembro daquele ano, o Projeto foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados (CFT), encontrando-se, agora, sob análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

Além do repatriamento, já previsto no projeto anterior, o PL nº 5.228/05 contempla, em seu art. 1º, a possibilidade de se legalizar os recursos, mantendo-os no exterior. Para tanto, estabelece alíquotas distintas: para quem desejar repatriar os recursos, que deverão permanecer aplicados em agência bancária situada no Brasil por pelo menos dois anos, a alíquota de imposto de renda aplicada seria de 10%; já para quem optar em manter seus recursos legalmente no exterior, a alíquota seria de 15% (art. 3º e art. 8º) (o texto original, alterado pela CFT, previa alíquotas de 3% e 6%, respectivamente).

Buscando estimular o reingresso de recursos, as alíquotas do novo projeto – ainda que superiores àquela prevista no PL nº 113/03 – permanecem baixas se comparadas com as atuais alíquotas do imposto de renda: 27,5% para pessoas físicas, e 34% para pessoas jurídicas (já considerada a contribuição social sobre o lucro).

Paralelamente, o Senador Delcídio Amaral apresentou, em meados de 2009, o Projeto de Lei nº 354 de 2009, que, ao dispor sobre medidas de estímulo à prática de cidadania fiscal, também propõe o repatriamento de bens e direitos no exterior de pessoas físicas e jurídicas.

Mas, ao traçarmos um paralelo entre os dois Projetos de Lei, a significativa e questionável mudança se dá na esfera penal, chamando a atenção o caráter mais restritivo e severo do PL nº 5.228/05, que, ao que tudo indica, será pouco recepcionado por pretensos optantes pela anistia.

Elencamos, a título ilustrativo, três importantes previsões dispostas no açodado PL nº 5.228/05 que contribuirão para seu insucesso.

A primeira delas estabelece que o repatriamento ou legalização dos recursos não se aplica às pessoas que tenham sido condenadas por tráfico de pessoas, de órgãos, de drogas e de armas, por pornografia infantil, terrorismo, improbidade administrativa, crimes contra o sistema financeiro nacional, economia popular, e as relações de consumo, dentre outros (art. 1º, § 1º).

Muito embora a intenção do legislador tenha sido contornar as fortes críticas decorrentes da anistia geral prevista no PL nº 113/03, inviabilizando o repatriamento de dinheiro espúrio, proveniente de tais condutas, o PL nº 5.228/05 não faz qualquer menção quanto à necessidade de comprovação de vínculo causal entre o montante a ser repatriado e os crimes elencados.

Dessa forma, caso o pretenso optante tenha sido condenado por qualquer dos crimes previstos no art. 1º, § 1º – o comerciante que tenha favorecido determinado comprador em detrimento de outro, por exemplo, conduta tipificada no art. 2º, II, da Lei dos Crimes contra a Economia Popular –, estaria impedido de se beneficiar da anistia, ainda que a condenação seja absolutamente desvinculada do valor que se pretende ver repatriado ou legalizado.

Ao estabelecer uma restrição objetiva, elencando crimes cuja condenação vede automaticamente o benefício – ainda que não guarde, repita-se, qualquer relação com o dinheiro mantido ilegalmente no exterior –, o PL nº 5.228/05 caminha em direção equivocada, impossibilitando o repatriamento de recursos de pretensos optantes pela anistia.

Um segundo aspecto a ser destacado, é a absurda previsão de que se constatado que os recursos repatriados são provenientes de tais condutas criminosas, ainda que recolhido o imposto de renda, a pretensa anistia tornar-se-ia sem efeito, com a cobrança integral do crédito tributário devido, e aplicação em dobro da sanção penal cabível (art. 1º, § 2º).

O legislador esqueceu-se, no entanto, de que o pressuposto legal da existência do crédito tributário é a ocorrência de fato gerador lícito. Obviamente, portanto, não poderá incidir qualquer tributo sobre o montante auferido com a prática de tráfico de órgãos, por exemplo, ou qualquer das condutas criminosas elencadas no art. 1º, § 1º do PL nº 5.228/05. Neste caso, ao contrário do que equivocadamente prevê o projeto de lei, aplicar-se-ia, ao pretenso optante, a pena de perdimento do valor em favor da União, como dispõe o artigo 91, II, b, do Código Penal.

Uma última questão merecedora de crítica diz respeito à aplicação em dobro da sanção penal cabível caso se constate que os recursos repatriados são provenientes dos crimes descritos. Ainda que a confissão espontânea do réu seja causa atenuante de pena prevista no Código Penal (art. 65, III, d), paradoxalmente, neste caso, acarretaria a majoração da pena, o que fatalmente também contribuirá para desestimular a adesão ao programa, sob o risco iminente de investigação e punição.

É evidente que muitos poderão argumentar que o PL procura extirpar do rol de anistiados criminosos contumazes, portadores de maus antecedentes, ainda que eventuais condenações pretéritas não estejam vinculadas ao dinheiro que se pretende ver repatriado.

No entanto, ainda que o dinheiro a ser repatriado tenha origem lícita, há efetivo risco ao pretenso anistiado se o dinheiro tiver sido depositado, no exterior, por intermédio de doleiros – em operação denominada dólar-cabo. Isso porque nessas circunstâncias, o suposto optante pela anistia, na maioria das vezes, não saberia identificar, efetivamente, a origem do recurso depositado, por ser proveniente de contas desconhecidas.

Assim, apesar da garantia do sigilo – já que no documento de recolhimento fiscal não é exigida qualquer espécie de identificação quanto à pessoa do
optante (art. 3º, § 3º) –, caso haja suspeita de que tais valores sejam decorrentes de algum dos crimes que vede o benefício, haverá efetivo risco de investigação e consequente punição.

Desta forma, se o contribuinte confessar o crime de evasão de divisas, buscando repatriar seus recursos – originários de contas desconhecidas –, correrá sério risco de, caso se investigue a origem do valor, descobrir-se que o montante não pode ser repatriado, por ser provento de um dos crimes previstos no art. 1º, § 1º, do PL nº 5.228/05, ainda que não tenha sido perpetrado pelo optante.

Parece, portanto, que as propostas legislativas apresentadas formalizam situações diametralmente opostas: ou a anistia é geral, retomando-se a ideia original do PL nº 113/03, o que, para muitos, poderia representar a oficialização da lavagem de dinheiro no Brasil – já que não há restrição quanto a eventuais crimes antecedentes; ou se estabelecem critérios sancionadores e impeditivos mais rígidos, restringindo, com isso, o leque de beneficiários e consequentemente o montante a ser repatriado ou legalizado.

Tudo indica que o caminho mais razoável a ser seguido é este último, ainda que, repita-se, a captação de dinheiro seja menor.

Entretanto, apresentando mudanças de eficácia questionável, o PL nº 5.228/05 dificilmente surtirá o efeito pretendido: o aporte de grande volume de recursos no Brasil. É necessário aperfeiçoar a proposta, tornando-a mais maleável, preenchendo lacunas e contornando pontos negativos, até que sejam ultrapassadas as diversas barreiras apontadas.

Fernando Castelo Branco, Advogado criminal, Professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do Programa de
Educação Continuada e Especialização em Direito Gvlaw da Fundação Getúlio Vargas.

Fernanda de Almeida Carneiro, Advogada criminal, Pós graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.