O aproveitamento de provas ilícitas
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 14.04.15, Opinião, p. A2
Autores: Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro
Em resposta às manifestações populares que se espalham pelo País desde que o escândalo de corrupção na Petrobras, exposto pela Operação Lava-Jato, veio à tona, a Presidente Dilma Rousseff divulgou, em meados do mês passado, um conjunto de medidas de combate à impunidade.
Dentre as propostas apresentadas – muitas das quais mera repetição de projetos que tramitam há anos no Congresso Nacional, como a criminalização do enriquecimento ilícito e do caixa dois –, passou relativamente despercebido o polêmico “aproveitamento de provas ilícitas”.
Bastaria se ater à absoluta falta de técnica legislativa para verificar a inconsistência da proposta: ao contrário do sugerido, não há falar-se em provas ilícitas, mas sim, em ilicitude na sua obtenção.
Cumpre ressaltar que, no cenário jurídico atual, a utilização de provas obtidas de forma ilegal é vedada tanto por cláusula pétrea constitucional (artigo 5º, inciso LVI, da Carta Magna), quanto por legislação federal, que também proíbe as provas dela derivadas (artigo 157 do Código de Processo Penal).
No entanto, aduzindo ser “dever do juiz buscar o máximo aproveitamento dos atos processuais”, a medida proposta relativiza a ilicitude da obtenção da prova, sopesando os ônus e benefícios de sua utilização. Partindo do pressuposto que nenhuma garantia pode ser considerada absoluta, autorizar-se-ia o emprego de determinada prova, ainda que obtida de forma ilegal, caso fosse imprescindível para o deslinde da causa penal.
Segundo a proposta, “ressalvados os casos de tortura, de violência física, de ameaça, ou de violação da residência e interceptação de comunicações sem mandado ou ordem judicial”, dentre outros casos de igual gravidade, “poderá o juiz ou tribunal determinar o aproveitamento da prova ilícita, com base no princípio da proporcionalidade, quando os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo, da decretação da nulidade, sobre o comportamento futuro do Estado em investigações”.
Diante da grande resistência enfrentada, inclusive por membros do próprio Ministério Publico, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, sugeriu a revisão do texto.
Na mais recente versão da proposta, fica a critério do juiz ou tribunal “determinar novos parâmetros para definição da prova lícita e sua valoração”, com base no mesmo princípio da proporcionalidade.
Apenas aparentemente menos atentatória, o objetivo final é o mesmo, ou seja, autorizar provas obtidas de forma ilegal desde que para atingir finalidade considerada “maior”.
A razão da trágica estratégia é evidente: evitar que processos criminais robustos sejam anulados caso se verifique que as provas tenham sido obtidas com infringência à norma material, o que, evidentemente, reforça a sensação de impunidade.
É assente em nossa doutrina e jurisprudência, por exemplo, que denúncia anônima não é meio hábil para sustentar, por si só, a instauração de inquérito policial ou autorizar restrições a direitos individuais.
Mas suponhamos que, a fim de se apurar a veracidade de denúncia anônima recebida, fosse deferida a quebra de sigilo telefônico do suspeito. Imaginemos, então, que no curso da interceptação, a prática criminosa restasse cabalmente comprovada.
De acordo com o entendimento já pacificado por nossos Tribunais Superiores, a prova decorrente da intercepção ilegalmente autorizada – posto que baseada exclusivamente em denúncia anônima – não poderia ser utilizada para instruir processo criminal.
Ainda que, à primeira vista, a medida proposta possa parecer uma boa alternativa de garantir a descoberta da verdade no processo e, consequentemente, a aplicação da lei penal, não se pode admitir, sob este ou qualquer outro pretexto, a burla à Constituição, desrespeitando-se os direitos fundamentais nela previstos.
A fórmula autoritária do male captum, bene retentum – prova mal colhida, mas bem conservada –, é inadmissível em nosso ordenamento jurídico e já foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal. Basta lembrar de lapidar voto do Ministro Celso de Mello, quando asseverou que “a Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual)” (HC 82.788/RJ).
Afinal, é sabido que, à medida que se intensifica o afã investigativo do Estado, na tentativa de minimizar a sensação de impunidade, avolumam-se perigosamente situações de ilegalidades e abusos.
Caso fosse autorizada, sob esta nova égide, a relativização da prova obtida de forma ilegal, bastaria, aos mal intencionados, forjar denúncias anônimas para embasar pedidos de quebra de sigilo fiscal e telefônico, expedição de mandados de busca domiciliar, ou até mesmo, absurdamente, mandados de prisão.
O “aproveitamento de provas ilícitas”, nos moldes propostos, constitui, portanto, evidente violação aos princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, basilares do Estado democrático de direito. Por essas razões, deve ser fortemente ser rechaçado.
FERNANDO CASTELO BRANCO, Advogado criminal, Professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Diretor do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.
FERNANDA DE ALMEIDA CARNEIRO, Advogada criminal, Pós graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, Coordenadora do Comitê de Direito Penal do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados.