O direito à ampla defesa e a dignidade da vítima no processo penal
“Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”. Reflexão de Carlos Drummond de Andrade em condolência à Ângela Diniz
Em 1985, o então Governador do Estado de São Paulo, André Franco Montoro, juntamente com seu Secretário de Segurança Pública, Michel Temer, inauguraram a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, no Estado e no Brasil.
Ao descerrarem a placa, Montoro enfatizou que criavam aquela Delegacia especializada, na esperança de que, um dia, pudessem fechá-la.
Passados 35 anos, o Deputado Federal Rui Falcão acaba de apresentar o PL 3890/20 sobre o “Estatuto da Vítima”, que impõe o reconhecimento de tratamento digno e não discriminatório a todas as vítimas de crimes. Um verdadeiro “catálogo geral” de direitos processuais e extraprocessuais dos ofendidos.
A relação entre esses dois fatos é simples: A discriminação, em nossa sociedade, contra as vítimas – principalmente mulheres – perdura ao longo dos tempos e justifica a carência de proteção por Delegacias especializadas e Estatutos de defesa, que nada mais fazem do que repetir as garantias constitucionais de dignidade e igualdade, previstas para todo e qualquer cidadão.
Os recentes casos de violência sexual divulgados pela imprensa, praticados principalmente contra mulheres, têm dado destaque, oportunamente, à gravidade do assunto.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em sua 14ª edição, a cada 8 minutos um estupro é praticado no Brasil, o que equivale a 180 estupros diários, onde 57,9% das vítimas têm no máximo 13 anos e 85,7% delas são do sexo feminino.
Apesar dos percentuais impactantes, não há, em contrapartida, dados nacionais oficialmente compilados que demonstrem quantos casos de estupro resultaram em processos e consequentes condenações dos acusados. Sabe-se que, no Estado de São Paulo, apenas 2 em cada 10 inquéritos policiais instaurados, segundo o DataFolha, identificam o autor do crime.
Seja pela imprecisão na coleta de dados ou pela ineficácia das investigações, fato é que no Brasil a taxa de condenações é muito menor do que o volume de ocorrências, girando em torno, assustadoramente, de 1%, segundo o perito criminal federal e ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmüller.
Quais seriam, então, as causas da ineficiência na solução de casos de violência sexual?
Há, principalmente, dois fatores determinantes e profundamente relacionados: o primeiro deles é o silêncio da vítima, responsável diretamente pela subnotificação de abusos. O segundo, a sua culpabilização sistêmica – embora algumas poucas vítimas tenham conseguido romper a barreira de não se calar, em casos de violência sexual, são constantemente estigmatizadas como responsáveis pela ocorrência criminosa.
Essa tendência deve-se, principalmente, ao viés cultural notadamente machista de nossa sociedade, impondo à vítima o silêncio, para não sofrer o julgamento moral e, caso insista em acusar o abusador, sofrerá novas formas de ataques e críticas, colocando em suspeição a sua palavra, e culpabilizando-a pelo evento criminoso.
O crime sexual guarda uma peculiaridade interessante e aterradora: diferentemente dos demais, como os crimes contra o patrimônio – furto, roubo, extorsão mediante sequestro, por exemplo -, nas infrações sexuais, a vítima sente-se socialmente intimidada, constrangida, envergonhada em noticiá-lo. No caso de vítima mulher, o patamar de subnotificação é ainda mais elevado. O IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – estima que apenas 10% dos casos são registrados.
Conforme ainda o IPEA, 58,5% dos entrevistados responsabilizam a vítima pela ocorrência do estupro. Ora pela forma “inapropriada” de se vestir – uma saia muito curta ou um vestido decotado -; ora pela publicação, em mídias sociais, de fotos sedutoras e insinuantes; ora, ainda, por ter bebido demais.: “Se elas soubessem se comportar, consequentemente, haveria menos estupros”; “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. Essa é a lógica abjeta e falaciosa que busca tirar a responsabilidade pelo abuso sexual do único responsável pelo crime: o próprio abusador.
Assim como na sociedade, o comportamento machista e conservador está arraigado em nosso sistema legal: desde o primeiro Código Penal da República (1890/1940) vigorava abertamente a tese da legítima defesa da honra (art. 27,§ 4.º) que previa não ser criminosos “os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência”, no momento do crime.
Com base nesse dispositivo, ardilosamente utilizado pela defesa, os criminosos passionais eram comumente absolvidos, sob a justificativa de que, ao flagrarem o cônjuge – normalmente mulher – em adultério, ou motivados por intenso ciúme, estariam privados da inteligência e dos sentidos e, portanto, legitimados a agredir ou matar.
Numa absurda inversão de valores e papéis, vitimizava-se o abusador e vilanizava-se a vítima.
O homicídio de Ângela Diniz por Doca Street, em 1976, na cidade de Búzios-RJ, é prova viva da cultura de objetificação da mulher.
Impulsionado pelo ciúme, Doca matou Ângela com 4 tiros, três deles no rosto e um na nuca.
Em sua defesa, o advogado Evandro Lins e Silva fez uso da estratégia que até hoje é a mais usual: destruir a honra da vítima. Denominando-a como “Vênus lasciva” e “prostituta de alto luxo”, dentre outros adjetivos ultrajantes, converteu habilmente o acusado em vítima de uma mulher fatal, que o havia ofendido em sua virilidade e dignidade masculina.
O sucesso daquele plano foi inquestionável. Doca Street foi condenado em seu primeiro julgamento a uma pena irrisória de dois anos de prisão, suspensa condicionalmente, e saiu aplaudido do Tribunal.
Os movimentos feministas não ficaram inertes e se levantaram em defesa dos direitos das mulheres. Foi quando surgiu o slogan “quem ama não mata”, em 1980, em plena ditadura militar. As mortes de Heloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, assassinadas pelos maridos, deram origem ao ato com centenas de mulheres reunidas em Belo Horizonte.
Em novo julgamento, em novembro de 1981, o júri não acatou a tese da legítima defesa da honra, mas sim a de homicídio doloso qualificado, condenando Doca Street a quinze anos de reclusão.
Passados 40 anos, os recentes casos noticiados pela imprensa, como o de Mariana Ferrer e das vítimas do ex-médico Abib Maldaun Neto, demonstram que a cultura de responsabilização da vítima, infelizmente, ainda continua em vigor, tanto no âmbito social quanto no processo penal.
Outro exemplo do ranço machista e notadamente discriminatório em nosso ordenamento jurídico pode ser detectado desde o início de nossa colonização, por meio das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas que criminalizavam abusos sexuais e ameaças contra a mulher, mas somente se ela fosse considerada “mulher honesta”. A expressão “mulher honesta” só foi suprimida de nossa legislação em 2005, em pleno século XXI!
Diante desse panorama cultural e legislativo recente, muitos têm questionado se a ampla defesa, como garantia constitucional, é um direito absoluto e ilimitado ou se comportaria a relativização, principalmente quando utilizada como ferramenta propagadora de ofensas no curso do processo, descontextualizadas dos fatos, com objetivo exclusivo de agredir a vítima, caracterizando abuso no direito de defesa.
O princípio da ampla defesa, como clausula pétrea constitucional, é base fundamental do devido processo legal, do direito de defesa e, consequentemente, da celebração de Justiça.
A dignidade da pessoa humana também é direito fundamental que deve ser assegurado aos cidadãos, inclusive àqueles que compõem e integram a lide penal, sejam eles vítimas ou acusados.
Ou seja, não se pode alegar aparente conflito e consequente prevalência de direitos fundamentais entre a ampla defesa do acusado e a preservação da dignidade da vítima.
Pautados na visão e interpretação sistêmica da nossa Constituição Federal, ambos os direitos devem coexistir no Processo Penal, de forma devidamente equalizada.
Melhor dizendo, o sagrado direito à ampla defesa deve ser totalmente preservado, assim como a proteção da dignidade da vítima, não convertida em vilã e submetida à execração pública e processual, como tese de defesa.
E como impedir a utilização dessa vil estratégia de demonização da vítima, submetendo-a à nova violência, agora de cunho moral, sem violar o direito de defesa do acusado?
Atacar, acusar e agredir a vítima, de forma descontextualizada do processo, não pode ser recepcionado como estratégia ou tese defensiva.
A Defesa, indispensável à administração da justiça, no seu amplo exercício, pode muito, mas não pode tudo.
Cabe ao Poder Judiciário, calcado na imparcialidade, celebrar e impor os limites das atuações dos operadores do Direito no Processo Penal, garantindo a celebração do exercício da ampla defesa, sem permitir que a dignidade da vítima seja vilipendiada.
O devido processo legal deve harmonizar os direitos e garantias dos réus e vítimas, amparado no respeito à dignidade humana de ambos, como base essencial de qualquer sociedade civilizada.
Infelizmente, a recente audiência celebrada no caso de Mariana Ferrer demonstrou que os vícios de uma cultura machista e preconceituosa ainda estão arraigados em nossa sociedade, impregnando também o processo penal e, perigosamente, podendo afetar a celebração da justiça.