Opinião

Revista Consultor Jurídico – 18 de setembro de 2019

Por Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa

O Senador Cid Gomes apresentou, no último dia 11, o Projeto de Lei n. 4981/2019, visando acrescentar o Título II-A no Livro I do Código de Processo Penal, para criar a figura do Juiz das Garantias[1].

Diante da vagarosa tramitação do anteprojeto do Novo Código de Processo Penal[2], que já sugeria a introdução desse instituto, é meritória a iniciativa de propô-lo em paralelo, possibilitando maior celeridade na sua análise.

Não há, atualmente, qualquer impedimento legal de que o juiz oficiante na fase investigativa (pré-processual), responsável por decretar medidas invasivas como quebras de sigilo telefônico, fiscal e bancário, buscas e apreensões, prisões provisórias, etc., possa também atuar no processo propriamente dito (iniciado após o oferecimento de denúncia) e, até mesmo, julgar-lhe o mérito.

Com a mudança proposta, o Juiz das Garantias seria responsável por toda a etapa investigativa, ficando vedada sua atuação no processo dela decorrente, ante a possibilidade de que as convicções formadas no curso da investigação acabem por contaminar a imparcialidade necessária ao justo julgamento do feito, seja para absolver ou condenar o acusado.

Trata-se de importante instituto, com previsões equivalentes em diversos países[3], que assegura distanciamento do juiz do processo em relação aos elementos colhidos em estágio preliminar, muitas vezes produzidos de forma unilateral e sem efetivo contraditório, além de potencializar a melhoria da prestação jurisdicional, com a especialização da matéria pelos magistrados.

No entanto, em análise crítica, entendemos que se fazem necessárias pontuais alterações no Projeto:

A proposta prevê, entre as atribuições do Juiz das Garantias, prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial (art. 23-A, VIII). Sugere-se estender a competência também para investigados soltos que estejam cumprindo medidas cautelares, tendo em vista igualmente caracterizarem, ainda que em menor escala, restrição à liberdade.

O texto proposto atribui ao Juiz das Garantias decidir sobre os pedidos de outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado (art. 23-A, XII, d). Sugere-se simplificar a redação estendendo a competência para “quaisquer outros meios de obtenção de prova que exijam prévia autorização judicial”, tendo em vista que a decretação de determinadas medidas poderá refletir em direitos de terceiros e não somente dos investigados (ex.: medidas assecuratórias contra empresa em que o investigado trabalha).

O Projeto silencia a respeito da competência para presidir as audiências de custódia. Sugerimos que seja acrescentado ao rol de competências do Juiz das Garantias “presidir a audiência de custódia relativa à prisão em flagrante e às prisões provisórias, sendo-lhe estendida a competência para apreciar, no curso do processo, requerimentos de prisão preventiva e de medidas cautelares”. É intuitivo que deve caber ao Juiz das Garantias decidir sobre prisões e medidas cautelares, ainda que no curso do processo, uma vez que a tomada de decisão pelo juiz do processo comprometeria sua isenção para o julgamento de mérito.

O Projeto dispõe que a competência do Juiz das Garantias cessa com a propositura da ação penal (art. 23-B, caput). Dessa forma, o mesmo juiz que receber a denúncia poderá julgar o mérito do processo. É esperado que o magistrado, ao decidir sobre o acolhimento da inicial acusatória, consulte os elementos informativos que a lastrearam, produzidos na fase pré-processual, o que comprometerá sua imparcialidade e esvaziará o próprio escopo da mudança na lei. Propõe-se, portanto, estender a competência do Juiz das Garantias até o “recebimento da denúncia ou queixa, sendo-lhe privativo, ainda que no curso do processo, apreciar requerimentos de prisão preventiva e de medidas cautelares”.

A redação do Projeto estabelece que o Juiz das Garantias ficará impedido de funcionar no processo (art. 23-C). A fim de que a garantia e o próprio espírito da lei não se tornem letra morta caso não observados, diante da possibilidade de relativização de nulidades pelos Tribunais, propõe-se que seja acrescentado ao final do dispositivo que a atuação do Juiz das Garantias no curso do processo “acarretará nulidade absoluta de todos os atos processuais que ele presidir e os deles decorrentes”.

Sugere-se acrescentar a figura do Juiz das Garantias em segunda instância. Não há razão para se discriminar a atuação dos juízes de primeiro grau e não o fazê-lo em relação aos magistrados das instâncias recursais. Assim, no caso de habeas corpus, mandados de segurança e quaisquer outros recursos interpostos contra decisões proferidas pelo Juiz das Garantias, os Desembargadores que irão julgá-los deverão ficar impedidos de participar de eventual processo de mérito. Entendemos que, por razões de ordem prática por conta do reduzido número de Ministros, essa restrição não deve ser estendida aos Tribunais Superiores.

Propomos, ainda, medidas relacionadas à implementação do instituto. A maior ressalva relacionada à introdução do Juiz das Garantias se dá pelo fato da dificuldade de introduzi-lo em comarcas menores, em que há somente um juiz lotado.

Não soluciona o problema a ideia de ser determinada a competência cruzada de juízes, em que magistrados de comarcas próximas funcionariam como Juízes das Garantias e vice-versa. Esse critério esbarraria em dois problemas práticos: a) pela geografia do território brasileiro, pode haver casos em que as comarcas vizinhas estejam a considerável distância, o que prejudicaria a necessária celeridade para a apreciação de pedidos típicos da fase investigativa (ex.: representação de prisão temporária); e b) em casos de duas comarcas com apenas um juiz em cada, a competência cruzada, com o passar do tempo, se tornaria um jogo de cartas marcadas, com a previsibilidade da posição do magistrado atuante como Juiz das Garantias sobre determinadas medidas. Também abriria espaço para maior proximidade entre a Autoridade Policial e o Ministério Público com o Juiz, correndo o risco de que o magistrado possa atender mais facilmente aos pedidos feitos por esses atores.

Buscando minorar esses efeitos, sugerimos que seja estabelecida a criação de varas especializadas nas capitais dos Estados para o desempenho da atividade de Juiz das Garantias, sendo estipulado período máximo de permanência no cargo. Ainda, todos os requerimentos da esfera de competência do Juiz das Garantias deverão ser encaminhados e decididos eletronicamente.

Garantir-se-ia, assim, a um só tempo, o rodízio dos magistrados oficiantes no cargo, limitando a possibilidade de aproximação entre magistrados e autoridades requerentes, sem, por outro lado, abrir-se mão da celeridade na apreciação e tramitação de pedidos dessa natureza, como muitas vezes o procedimento investigatório requer.

Por fim, sugere-se o aumento do período de vacatio legis da lei, atualmente prevista no Projeto em 90 dias após a publicação (art. 2º) para o prazo de 1 ano, garantindo, assim, tempo suficiente para o Poder Judiciário implementar as mudanças sem açodamento.

Esperamos, com essas breves considerações, auxiliar no aperfeiçoamento do Projeto, na esperança de que o Parlamento destine especial atenção e aprove a criação da figura do Juiz das Garantias. Trata-se de medida imprescindível para o amadurecimento do processo penal brasileiro, em harmonia com o que já está previsto em diversos regimes democráticos mundo afora.

[1] Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8006589&ts=156 8380264571 &disposition=inline. Acesso em 16.09.19.

[2] PLS n. 156/2009, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados como PL n. 8045/2010.

[3] Podemos citar como exemplos os cargos de Giudice per le indagini preliminari na Itália, Juiz de instrução em Portugal, Juez de garantía no Chile, entre outros.

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Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa é advogado criminal e associado de Castelo Branco Advogados Associados.