Interrogatório por videoconferência pode ferir o direito de defesa?

Por Jornal do Advogado – OAB/SP

03/09/2018

SIM

Para quem não atua no direito criminal, pode parecer descabida a resistência que o interrogatório por videoconferência ainda enfrenta entre os advogados da área. Afinal, argumentam, tal procedimento já é utilizado, com sucesso, por vários países do mundo, desde meados da década de 1980.

Mesmo no Brasil, a tecnologia não é nova. O primeiro interrogatório por videoconferência foi realizado em 1996, ainda que não houvesse qualquer regulamentação a respeito. As primeiras leis sobre o assunto – estaduais – foram promulgadas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, apenas em 2005. Durante esse período, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela validade dos atos, por ausência de demonstração concreta de prejuízo para o acusado.

No entanto, o interrogatório por videoconferência permaneceu objeto de intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais: a celeridade da instrução versus o direito do réu de estar presente fisicamente perante o juiz. Em 2008, o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre o tema, declarando as citadas leis inconstitucionais, nos termos do artigo 22 da Constituição Federal (segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre direito processual).

No ano seguinte, a matéria foi finalmente disciplinada em âmbito federal. A Lei nº 11.900 adicionou nove parágrafos ao artigo 185 do Código de Processo Penal, regulamentando a possibilidade de realização do interrogatório do réu preso “por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real”.

De acordo com o texto legal, a realização de qualquer ato processual pelo sistema de videoconferência só poderá ser determinada “excepcionalmente”, por “decisão fundamentada”, e “desde que a medida seja necessária para atender” uma das finalidades previstas, de forma taxativa, em seus incisos: prevenir risco à segurança pública, quando houver, por exemplo, fundado receio de fuga; em razão de enfermidade; coação à vítima ou testemunha; ou responder à gravíssima questão de ordem pública.

A excepcionalidade da medida demonstra cabalmente que a presença física do acusado perante o juiz é importante para a formação de sua convicção. A tela de um computador, segundo o desembargador Guilherme de Souza Nucci, “jamais irá suprir o contato direto que o magistrado deve ter com o réu, até mesmo para constatar se ele se encontra em perfeitas condições físicas e mentais”.

No entanto, na prática, a determinação de interrogatório por videoconferência raramente é justificada. Quando é, o argumento utilizado é genérico, como a possibilidade de fuga. Mas sabemos que os reais motivos não têm nada de excepcionais. Pelo contrário, são problemas crônicos e absolutamente comuns no âmbito administrativo: indisponibilidade de viaturas para transporte do réu, número insuficiente de agentes para sua escolta, custo operacional, dentre outros.

Da mesma forma, as garantias previstas no artigo 185 do CPP, embasadoras da lisura do ato e do exercício do contraditório e da ampla defesa, também são dificilmente cumpridas.

O parágrafo 5º, por exemplo, assegura ao réu a presença de pelo menos dois defensores – aquele que deverá estar presente na sala de audiência do Fórum e o que estará no presídio em sua companhia – além de canal telefônico reservado entre eles.

Não é necessário militar na área, entretanto, para saber que isso não ocorre. O advogado, por mais combativo que seja, não detém o dom da ubiquidade. Sozinho no presídio, muitas vezes algemado, é impossível garantir que o réu não sofra qualquer espécie de pressão física e psicológica, maculando a autodefesa. O precário canal telefônico que se tem experimentado também não se equipara ao contato pessoal do preso com seu defensor.

É preciso, portanto, que o recurso tecnológico seja usado com parcimônia, reservando-o aos casos absolutamente excepcionais.

Fernando Castelo Branco – Advogado, é professor de Direito Processual Penal da PUC-SP

 

NÃO

Uma das primorosas obras de nossa literatura, Esaú e Jacó, de Machado de Assis, traz narrativa que se desenrola num período de transição nacional: a passagem da Monarquia, então desacreditada, para a República, imposta por militares. Dentre as questões suscitadas, o gênio do Cosme Velho descreve, por meio do personagem principal – Conselheiro Aires –, as contradições entre uma postura pública liberal, mas, no fundo, apegada ao atraso.

Com os devidos desconto e contextualização, o paradoxo parece se aplicar ao momento atual do processo penal brasileiro. Afeito a uma herança burocrática cartorial e autoritária, fruto de um Código do Estado Novo, as pontuais atualizações do diploma, decorrentes das mudanças dos tempos, são comumente rechaçadas, quando não desvirtuadas, pelos próprios aplicadores do Direito, que tornam o avanço em retrocesso.

A possibilidade de interrogatório ou oitiva de testemunhas por videoconferência parece subsumir-se a tal hipótese. Em razão dos inúmeros retardos na realização de audiências com presos, em face, principalmente, de problemas de escoltas, em 2005, legislação estadual paulista disciplinou o interrogatório on-line.

A desafiante questão prática não poderia ter sido equacionada de pior forma, não pelo mérito em si, mas pelo fato de que o Estado não poderia disciplinar a matéria, não adotada pela lei federal. Pela ausência de referência no diploma processual, bem como sinalizando violações ao contraditório e à ampla defesa, o STF declarou, em 2007, a inconstitucionalidade da medida. Como, no entanto, isso se deu para caso concreto, foi editada a Lei nº 11.900/2009, acolhendo a possibilidade excepcional no CPP.

Frise-se que a medida somente ocorre em caráter extraordinário, não admitindo banalização. Ela apenas é possível para: a) prevenir risco à segurança, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou possa fugir; b) viabilizar a participação do acusado no ato, quando haja relevante dificuldade para comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância; c) impedir influências sobre testemunha ou vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência; d) responder à gravíssima questão de ordem pública. As hipóteses são, assim, razoáveis, ensejando devida comprovação e decisão fundamentada, afastando-se a simples conveniência administrativa.

Por conseguinte, havendo respeito à lei, por si só, não se pode falar em obliteração ao direito de defesa. No caso concreto, se isso ocorrer, ensejará a nulidade do ato. Do contrário, consagradas estarão celeridade e economia processuais, segurança pública e gravação do ato. Quanto a esse último aspecto, note-se que, Brasil afora, nem sempre a gravação ocorre ordinariamente, sendo que a ausência de videoconferência obstaria ao julgador recursal visualizar o acusado e ouvir suas palavras defensivas.

Demais disso, frise-se que o apego ao denominado “contato físico” entre acusado e magistrado parece sinalizar-se como simples herança de um arbítrio subjetivista. O julgador deve se ater às provas dos autos e não a voluntarismos ou a impressões decorrentes de simpatias ou antipatias pessoais. De mais a mais, se a falta desse contato direto ocasionar algum tipo de óbice, sua defesa deverá insurgir-se contra isso e, na dúvida, o juiz há de realizar a audiência pessoal. O que não se pode é presumir antecipadamente o dano à defesa, à qual, inclusive, pode interessar a medida.

Em conclusão, vê-se que a adoção da videoconferência não enseja, per se, prejuízo. No entanto, evidentemente, deve-se atentar para seu manejo prático, para fins de que não se fique na ambígua transição entre o antigo e o novo, como na sugestão do machadiano Conselheiro Aires, que recomenda ao comerciante da “Confeitaria do Império”, que deseja pintar sua placa, a que, diante das incertezas, escreva a frase somente até a metade. 

Luciano Anderson de Souza – Advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo