De Tropeço em Tropeço

Folha de S. Paulo, 23/03/2016, Tendências/Debates, p. A3

http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/03/1752994-de-tropeco-em-tropeco.shtml

 

Durante o regime militar, pessoas eram presas ilegalmente e levadas ao cárcere. A tortura era tolerada até por presidentes-ditadores, como foi revelado pelo jornalista Elio Gaspari em um de seus livros sobre essa época sombria da história do Brasil.

Com o fim da ditadura, a Constituição Federal de 1988 dedicou aos direitos e às garantias individuais expressiva atenção. O Código de Processo Penal também é rico em definir direitos e garantias dos investigados e réus.
Há referências explícitas, por exemplo, de que a condução coercitiva deve ser exclusivamente aplicada em casos nos quais o acusado não atendeu uma intimação anterior. A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, repudia a privação de liberdade física não prevista em lei.

Apesar desses regramentos jurídicos, presenciamos no começo do mês um marcante espetáculo de violência e ilegalidade: a condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor em inquérito policial para o qual não havia sido intimado.

Desnecessário dizer que todos os suspeitos de crimes devem ser investigados, até mesmo ex-presidentes, mas as investigações criminais contra todos os cidadãos, do mais humilde ao mais privilegiado, devem respeitar direitos e garantias.

Naquela ocasião, Lula experimentou uma sensação já vivenciada por mais de uma centena de outros investigados e testemunhas na Operação Lava Jato -ser tolhido em sua liberdade de locomoção, uma das mais preciosas garantias constitucionais.

A ordem superior, como em todas as outras oportunidades, partiu do juiz federal Sergio Moro, com a observação de que a “medida não implica cerceamento real da liberdade de locomoção, visto que dirigida apenas à tomada de depoimento”. Ou seja, instituiu-se, ilegalmente, a “prisão para averiguação”.

A reação a essa providência judicial foi tão forte que o juiz emitiu nota tentando explicar a medida, nitidamente arbitrária e dispensável. Não deixa de ser muito estranho um juiz recorrer à imprensa para justificar sua decisão lançada no processo e consumada pela aparatosa força policial.

Pior ainda é que a nota apenas agravou a situação, já que ofereceu resposta pública às críticas do ex-presidente Lula -o que, certamente, não fica bem para um juiz de direito, que só deve falar nos autos.

A réplica altamente qualificada ao desastroso episódio não se fez esperar. Veio de forma veemente pela voz do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal: “Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi. Só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado”.

Alguns dias depois, em 16 de março, uma nova violência processual maculou a imagem do juiz Moro -a quebra do sigilo da conversa telefônica entre Lula e a presidente Dilma, interceptada pela Polícia Federal.

A Presidência da República, como instituição, foi violada, na medida em que Moro, juiz de primeira instância, permitiu a divulgação da gravação que deveria ser avaliada pelo Supremo Tribunal Federal, única instância judicial competente para fazê-lo.

A correta persecução penal, seguindo o devido processo legal, não pode, de tropeço em tropeço, estar calcada em medidas ilegais de força, capazes de agradar a uma parcela da opinião popular (não confundir com opinião pública), mas que apenas desservem aos preceitos constitucionais e à democracia.

TALES CASTELO BRANCO, 80, é advogado criminalista. Foi presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo

FERNANDO CASTELO BRANCO, 49, advogado criminalista, é professor de processo penal da PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo