Artigo publicado na revista Consultor Jurídico, Online, v. 01, p. 00, de 15.03.11

Autores: Fernando Castelo Branco e Fernanda de Almeida Carneiro

A perigosa mistura entre direção e bebida mais uma vez fez inúmeras vítimas neste Carnaval. Neste período, os hospitais registram aumento de 40% nos atendimentos decorrentes de acidentes de trânsito. Campanhas de conscientização, e as blitzes tentam minimizar o problema. Mas, como punir o crime de embriaguez ao volante?

A garantia constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo configura o principal obstáculo, já que motorista pode simplesmente se negar a realizar exame de sangue ou teste em aparelho alveolar pulmonar – o bafômetro –, inviabilizando a comprovação da prática do eventual crime.

A necessidade da realização dos testes de alcoolemia como única forma de se comprovar a embriaguez é inovação trazida pela Lei 11.705/2008, que conferiu nova redação ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, estabelecendo que o condutor só é considerado embriagado se estiver “com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas”.

O mesmo artigo prevê, ainda, que “o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”.

O Poder Executivo, por seu turno, por meio do Decreto 6.488/08, estipulou que “seis decigramas de álcool por litro de sangue” equivale a “três
décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”, concentração verificada em “teste em aparelho de ar alveolar pulmonar”.

Entretanto, essa equivalência só poderia ser estabelecida pelo próprio Poder Legislativo, ao qual é constitucionalmente vedado delegar competência para legislar sobre matéria penal e processual penal. Assim, é flagrantemente inconstitucional toda e qualquer norma emanada do Poder Executivo – medidas provisórias ou decretos – que busque legislar sobre essas matérias.

Apesar da evidente inconstitucionalidade do Decreto 6.488/08, nossos tribunais firmaram sólido entendimento de que tanto o exame de sangue quanto o teste do bafômetro seriam meios aptos para constatar a embriaguez.

Então voltamos à questão inicial: como punir alguém que pode recusar-se a produzir contra si os únicos meios de prova admitidos para configuração do crime?

Buscando contornar a brecha criada pela Lei, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu controvertidas decisões dispensando a necessidade
do exame de sangue ou do teste do bafômetro. A embriaguez, sob este enfoque, pode ser atestada por outros meios de prova, como, por exemplo, exames clínicos ou depoimento de testemunhas.

Bastaria, portanto, que o policial participante da blitz confirmasse a embriaguez do motorista para comprovação da materialidade criminosa, pautado em perigosos critérios subjetivos de aferição.

A 5ª Turma visou prestigiar a antiga redação do artigo 306, que classificava a embriaguez ao volante como crime de perigo concreto, exigindo, apenas, que a condução do veículo, “sob a influência de álcool”, expusesse “a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Todavia, não cabe ao Poder Judiciário contornar eventual falha normativa aplicando-lhe interpretação diversa do que foi taxativamente estabelecido, punindo o motorista que aparenta, na opinião subjetiva de alguém, suposta embriaguez.

Já a 6ª Turma do STJ acompanha o posicionamento jurisprudencial majoritário – pacificado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – de que é indispensável submeter o motorista ao exame de sangue ou teste do bafômetro para que ele possa ser processado criminalmente.
Tendo em vista a grave divergência, por ora, todos os processos versando sobre embriaguez ao volante, em grau recursal, estão suspensos, aguardando apreciação da questão pela 3ª Seção do STJ – composta por ministros da 5ª e 6ª Turma –, que uniformizará o entendimento daquele Tribunal Superior sobre o tema.

Ainda que se consiga a futura uniformização desses julgados, a solução a ser alcançada continuará sendo inócua. Isto porque o Superior Tribunal de Justiça não se aterá ao ponto principal da questão: a flagrante inconstitucionalidade da Lei que procura, inutilmente, corrigir. Cabe, em última análise, ao Congresso Nacional – detentor do direito de legislar –, editar seus próprios critérios de equivalência, encontrando, assim, solução que possibilite a efetiva punição do crime de embriaguez ao volante – maior causador de vítimas fatais no trânsito em todo o Brasil.

Fernando Castelo Branco é advogado criminal, professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do Programa de Educação Continuada e Especialização em Direito Gvlaw da Fundação Getúlio Vargas.

Fernanda de Almeida Carneiro é advogada criminal, pós-graduada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.