As medidas de combate à violência doméstica contra a mulher na pandemia
OPINIÃO
As medidas de combate à violência doméstica contra a mulher na pandemia
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2020
Por Rafael Dezidério de Luca e Alice Marie Freire Gaudiot
A violência doméstica e familiar contra a mulher não é uma novidade no Brasil: segundo levantamento feito pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), uma mulher é agredida a cada quatro minutos [1]. No entanto, é preocupante como o número de casos de agressão em meio à pandemia da Covid-19 vem aumentando, enquanto houve a redução de seu registro oficial em boletins de ocorrência.
De acordo com estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública [2], entre outros acréscimos percentuais, houve elevação de 46,2% nos índices de feminicídio apenas no estado de São Paulo, chegando a 400% no estado do Mato Grosso. Essas taxas contrastam com a queda das comunicações às autoridades de casos de lesão corporal que não causam morte, a exemplo das variações de -21,9% e -29,1% nos estados do Mato Grosso e do Ceará, respectivamente.
A situação não é exclusiva do Brasil. Diversos países estão sofrendo desse mesmo problema social, inerente à cultura sexista da maior parte da sociedade contemporânea, fundada na segregação e tentativa de submissão do sexo feminino. A França, por exemplo, apresentou um aumento de 32%, o que seguiu um padrão aproximado semelhante em outros países europeus, como Itália, Espanha e Reino Unido [3].
Estudos apontam que esse crescimento recente está, de fato, relacionado com o isolamento social imposto em decorrência da proliferação do coronavírus [4], sendo necessário que o poder público tome medidas de urgência para proteger as mulheres ameaçadas. Como resposta à crise, o Conselho da Europa, organização internacional voltada à defesa dos direitos humanos no continente europeu, apresentou uma cartilha de ações contra a violência doméstica, desde a prevenção até o processamento dos crimes relacionados [5].
Nessa linha, autoridades em torno do mundo vêm realizando esforços [6] para controlar a situação. O governo francês apresentou formas de denúncia eletrônica e, assim como a Espanha, inseriu “palavras-código” para a identificação dos casos por outras pessoas. A Itália desenvolveu um aplicativo de celular para a realização da comunicação dos delitos. Os governos francês, espanhol e belga organizaram hotéis especiais de acolhimento das vítimas, semelhante ao que já existe no Brasil [7].
Em nosso país, o Conselho Nacional de Justiça criou, por meio da Portaria nº 70/2020, um grupo de trabalho para propor políticas públicas contra a violência doméstica e familiar contra a mulher nesse período, sob a coordenação do ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça. Entre as medidas discutidas, estão a possibilidade de as vítimas registrarem as agressões por meio da internet, a elaboração de um “sinal de socorro” (forma sutil de denúncia) divulgada através de campanha publicitária, e a parceria com instituições da sociedade civil para a conscientização destas vítimas sobre como conseguir ajuda.
A Polícia Civil do Estado de São Paulo, por sua vez, ampliou a ferramenta da delegacia eletrônica para permitir que as ofendidas denunciem seus agressores [8] com atendimento prioritário, sem prejuízo da continuidade do atendimento presencial nas 134 Delegacias de Defesa da Mulher. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também colaborou, formulando uma “carta de mulheres” [9], que permite a denúncia de abusos de forma mais ágil e sigilosa: com o mero preenchimento de um formulário disponibilizado em seu website, a vítima será orientada por uma equipe profissional sobre os locais mais próximos de atendimento para onde ela possa se dirigir.
Diante deste cenário, mesmo a iniciativa privada registrou sua contribuição. A empresa Rappi firmou parceria com o Projeto Justiceiras [10], coordenado por Gabriela Manssur, promotora de Justiça de São Paulo, a fim de implementar um botão de socorro no aplicativo, denominado SOS Justiceiras. Após clicar nessa nova opção, a pessoa será redirecionada para preencher um formulário, que será submetido à triagem feita por uma rede de profissionais de diversas áreas (jurídica, psicológica, de saúde e assistência social). Em seguida, será feito contato com a vítima via WhatsApp para fornecer as indicações e oferecer suporte.
É importante lembrar que, no Brasil, o combate à violência contra a mulher vem ganhando força desde 2006, com a elaboração da Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha). Esse marco legislativo garantiu maior visibilidade e especificidade à criminalização de delitos de violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral praticados nos âmbitos da unidade doméstica (com ou sem vínculo familiar), da família (laços sanguíneos ou por afinidade) ou de relação íntima de afeto (independentemente da coabitação).
Além disso, a lei inseriu medidas de proteção à mulher, destacando-se: a) obrigação do agressor de “afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida”; b) proibição de aproximação e contato deste com a ofendida e familiares; c) dever de prestar alimentos provisionais ou provisórios; d) encaminhamento da “ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento” (artigos 22 a 24).
Para garantir eficácia a essas previsões, existe uma série de serviços direcionados a esse fim [11]. Há centros especializados de atendimento à mulher, casas-abrigo para mulheres em risco de morte (locais que dispõem de assistência psicológica, jurídica e econômica [12]), casas de acolhimento provisório (as quais independem de risco iminente de morte), delegacias, defensorias e promotorias especializadas, juizados especiais, assistência de saúde e psicológica, e a Casa da Mulher Brasileira, que dispõe, em um único espaço, de todas as outras formas de assistência.
Trata-se de muitas ideias boas na teoria e que devem ser valorizadas. Infelizmente, a maior parte dessas previsões não encontra suporte no plano fático nacional, visto que a realidade da mulher violentada no Brasil é de extrema gravidade e dificuldade de obter apoio, ainda mais em cidades do interior do sertão nordestino, como se verifica nos dados do IBGE [13]: até 2018, apenas 8,3% dos municípios brasileiros possuíam delegacias especializadas de atendimento à mulher, enquanto somente 2,4% dispunham de casas-abrigo, locais responsáveis por salvar diversas vidas.
O maior problema do Brasil não é a falta de previsão de instrumentos protetivos às vítimas de violência, mas a dificuldade em conseguir efetivar a aparelhagem jurídica e social já existente. A formação de grupo de trabalho sobre o assunto pelo Conselho Nacional de Justiça vem assim como uma excelente oportunidade para propor políticas públicas que auxiliem na implementação e reforço dessas medidas de apoio e garantam a assistência jurídica, a fim de proporcionar melhor acesso à informação e aos mecanismos judiciais.
O caminho a ser traçado, à luz das ideias transmitidas pelos órgãos internacionais e pelos governos ao redor do mundo, é a atuação conjunta de soluções inovadoras (relacionadas aos avanços tecnológicos recentes) com a efetivação da aparelhagem jurídica e social já prevista. Como exemplo, em um país onde 80% da população tem acesso à internet [14], a discutida possibilidade de a vítima efetuar denúncias por websites ou aplicativos de celular é uma maneira simples, de baixo custo e efetiva de passar informações e propiciar apoio.
É deste modo que os agentes políticos e jurídicos devem agir para remoldar o grave quadro desenhado hoje na maior parte do mundo. O lamentável fato de que as medidas de isolamento social intensificaram a estrutural violência contra a mulher deve servir como alerta para que as medidas de proteção legalmente previstas em nosso ordenamento sejam efetivamente implementadas, com o auxílio das novas ferramentas que vêm sendo debatidas e que devem ser utilizadas de forma permanente para reforçar o combate à violência doméstica, mesmo depois de superada a crise causada pela pandemia.
[1] “Brasil registra 1 caso de agressão a mulher a cada 4 minutos, mostra levantamento”. Folha de São Paulo. 09 set. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-1-caso-de-agressao-a-mulher-a-cada-4-minutos-mostra-levantamento.shtml. Acesso em 06 mai.2020.
[2] “Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19”. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 16 abr. 2020. Disponível em: http://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf. Acesso em 05 mai. 2020.
[3] “European countries develop new ways to tackle domestic violence during coronavirus lockdowns”. NBC News. 03 abr. 2020. Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/world/european-countries-develop-new-ways-tackle-domestic-violence-during-coronavirus-n1174301. Acesso em 05 mai. 2020.
[4] “A New Covid-19 Crisis: Domestic Abuse Rises Worldwide”. New York Times. 06 abr. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/06/world/coronavirus-domestic-violence.html. Acesso em 05 mai. 2020.
[5] “Declaration of the Committee of the Parties to the Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic Violence (Istanbul Convention) on the implementation of the Convention during the Covid-19 pandemic”. Council of Europe. 20 abr. 2020. Disponível em: https://rm.coe.int/declaration-committee-of-the-parties-to-ic-covid-/16809e33c6n-cases-of-violence-against-women. Acesso em 05 mai. 2020.
[6] “As Coronavirus Spreads Across Europe, So Does Domestic Violence”. Voa News. 10 abr. 2020. Disponível em: https://www.voanews.com/science-health/coronavirus-outbreak/coronavirus-spreads-across-europe-so-does-domestic-violence. Acesso em 06 mai. 2020.
[7] “STJ – Ministro do STJ coordena elaboração de medidas emergenciais para prevenção de violência doméstica”. Revista Síntese. 04 mai. 2020. Disponível em:
http://www.sintese.com/noticia_integra_new.asp?id=458095. Acesso em 05 mai. 2020.
[8] “SP anuncia que Delegacia Eletrônica começou a registrar violência doméstica”. Governo de São Paulo. 03 abr. 2020. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/sala-de-imprensa/release/sp-anuncia-que-delegacia-eletronica-comecou-a-registrar-violencia-domestica/. Acesso em 05 mai. 2020.
[9] “Carta de Mulheres: TJSP lança canal on-line para prestar informações a vítimas de violência doméstica”. 07 abr. 2020. Notícias do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60783. Acesso em 05 mai. 2020.
[10] “Rappi cria botão contra violência doméstica em ação com advogadas”. Revista Exame. 05 mai. 2020. Disponível em: https://exame.abril.com.br/pme/rappi-cria-botao-de-violencia-domestica-em-acao-com-advogadas-e-psicologas/. Acesso em 07 mai. 2020.
[11] “Serviços Especializados de Atendimento à Mulher”. Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/acoes-contra-violencia/servicos-especializados-de-atendimento-a-mulher. Acesso em 05 mai. 2020.
[12] “Casas Abrigo: Como funcionam os refúgios para mulheres vítimas de violência doméstica”. Justificando. 19 nov. 2018. Disponível em: http://www.justificando.com/2018/11/19/casas-abrigo-como-funcionam-os-refugios-para-mulheres-vitimas-de-violencia-domestica/. Acesso em 05 mai. 2020.
[13] “Mesmo com Lei Maria da Penha, somente 2,4% dos municípios oferecem casas-abrigo”. Agência de notícias IBGE. 25 set 2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25518-mesmo-com-lei-maria-da-penha-somente-2-4-dos-municipios-oferecem-casas-abrigo. Acesso em 05 mai. 2020.
[14] “IBGE: 35,7% dos brasileiros vivem sem esgoto, mas 79,9% da população já tem acesso à internet”. Estadão. 06 nov. 2019. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-35-7-dos-brasileiros-vive-sem-esgoto-mas-79-9-da-populacao-ja-tem-acesso-a-internet,70003077941. Acesso em: 07 mai. 2020.
Rafael Dezidério de Luca é advogado criminal do escritório Castelo Branco Advogados Associados.
Alice Marie Freire Gaudiot é advogada criminal do escritório Castelo Branco Advogados Associados, pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Universidade de Coimbra e graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.