A INESQUECÍVEL LIÇÃO  DA “OPERAÇÃO CARNE FRACA” SOBRE O AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Publicado na revista do Advogado AASP – Ano XXXVII , Julho de 2017, n.º 134: “Direito do Agronegócio”

 

Sumário

  1. Introdução
  2. A espetacularização das operações da Polícia Federal
  3. Efeitos políticos e econômicos da “Operação Carne Fraca”
  4. A relevante missão da imprensa e a violação do sigilo funcional
  5. Os riscos da comunicação e a responsabilização pelos vazamentos de informação
  6. Conclusão
  7. Bibliografia

“Numa circunstância que agita fortemente as paixões, uma cidade se enche de clamores; os informes, a princípio discordantes, adquirem pouco a pouco uma espécie de uniformidade; a história se urde; a crença de uns forma a crença dos outros; é uma epidemia de testemunhos; a dúvida desaparece e o conjunto de ecos adquire a força de uma prova” (Bentham, Jeremy. Tratado de las pruebas Judiciales, Buenos Aires, 1971, v. II, p. 40).

 

  1. Introdução

O Direito Penal clássico, essencialmente antropocêntrico, sempre dedicou especial atenção aos crimes contra o patrimônio. Na sua escala valorativa eles aparecem logo após os crimes contra a pessoa, preponderando sobre outros bens e valores juridicamente tutelados pela última ratio do sistema legal[1].

Atendendo ao clamor dos pecuaristas, a Lei no 13.330/16 tipificou, de forma mais gravosa, os crimes de furto e de receptação de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes. O furto de gado (abigeato), entretanto, não é o único problema relacionado com o agronegócio, que merece a atenção do Direito Penal.

No mundo cada vez mais globalizado, o agrobusiness representa a aglutinação de diversas atividades produtivas, vinculadas à agricultura e pecuária, de relevância para a economia. Ao contrário do que se pode imaginar, o agronegócio não se limita à simples produção in natura de grãos, carnes e derivados do leite, apenas a título de exemplo. Para alcançar-se níveis elevados de produtividade, diversos setores da economia contribuem, direta ou indiretamente, para com o agronegócio, passando a compor o complexo sistema de empresas especializadas em tecnologia e biotecnologia, instituições financeiras de créditos, indústrias de insumos agrícolas (fertilizantes, herbicidas, sementes), indústrias de maquinários (tratores, semeadeiras, colheitadeiras),  laboratórios e indústrias veterinárias que fornecem vacinas e rações para a indústria produtora de proteína animal.

Muitos dos itens indispensáveis ao nosso dia a dia são oriundos do beneficiamento dos produtos agropecuários, disponibilizados por frigoríficos, supermercados, indústrias têxteis, calçadistas e fabricantes de móveis. Para ter-se uma ideia da importância do agronegócio para a economia do País, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) projetou a participação do setor agropecuário no PIB, no final de 2016, em 23%. Ou seja, quase ¼ de todos os bens e serviços produzidos no país eram derivados do agronegócio, representando 48% das exportações totais do país[2]. Contextualizar a relevância econômica dessa considerável fatia do Mercado é indispensável para a análise que se fará a seguir, e que procurará demonstrar o efeito nocivo que a ação escandalosa da Polícia Federal, na operação Carne Fraca, causou ao agronegócio brasileiro.

 

  1. A espetacularização das operações da Polícia Federal

Nos idos de 2002, a Polícia Federal, valendo-se de fontes diversas de inspiração, passou a buscar títulos criativos para as suas operações investigativas. Consta que a inovadora ação de marketing tinha como mentor o então Diretor-executivo da PF, Zulmar Pimentel, que, além de aprovar os nomes sugeridos pelos delegados, muitas vezes renomeava as operações quando achasse necessário. Tudo começou com o ataque ao jogo do bicho em Mato Grosso, desbaratado pela “Operação Arca de Noé”. Daí em diante, até os dias atuais, vê-se um verdadeiro dilúvio[3] de nomeação de novas operações: “Anaconda” (2003), “Farol da colina” (2004), “Narciso” (2005), “Sanguessuga” (2006), “Hurricane” (2007), “Satiagraha” (2008), “Castelo de areia” (2009), “Lewinsky” (2014), “Zelotes” (2015), “Aletheia” (2016), dentre outras. Por ironia do destino, em maio de 2007, o Delegado Federal Zulmar foi vítima da sua própria arte criativa e afastado de suas funções, após investigação da própria PF, acusado de passar informações sigilosas a colegas. O nome da operação que o pegou não poderia ser mais apropriado: “Navalha”, que pode cortar quem a usa.

Ao longo desses 15 anos de investigações, intituladas como se fossem uma jocosa brincadeira, nenhuma delas se valeu de efetivo policial tão grande quanto a “Operação Carne Fraca”, promovida de forma ruidosa no dia 17 março de 2017. Naquela sexta-feira, o país amanheceu ao som de notícias alarmantes: 1.100 policiais estavam nas ruas para cumprir 77 mandados de condução coercitiva, 194 de busca e apreensão e 28 de prisão. Os números surpreendentes das medidas não foram as únicas questões a merecer destaque: dentre os investigados estavam funcionários e o alto escalão da JBS e da BRF, duas das maiores produtoras de alimentos do mundo, além de funcionários do Ministério da Agricultura. O teor da entrevista concedida pelo delegado responsável pela operação parecia não deixar dúvida: o setor frigorífico, apodrecido em sua totalidade, entrara em colapso.

A “Operação Carne Fraca” gerou significativo impacto na relação entre o Direito Penal e o agronegócio. A atividade agroindustrial, antes retratada pelos jornais no Caderno de Economia e Negócios, passou a figurar, da noite para o dia, nas páginas policiais dos principais jornais, ao redor do mundo.[4]

Em linhas gerais, a maior operação já realizada pela Polícia Federal propunha-se a apurar possíveis irregularidades nos frigoríficos e eventuais atos de corrupção por parte dos agentes de fiscalização. Entretanto, após gerar graves consequências econômicas, o saldo final da desastrada operação detectou resultados bem mais modestos, conforme atesta a nota divulgada, no dia seguinte da deflagração da ação policial, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento: dos 11 mil funcionários do Ministério da Agricultura, 2.300 são fiscais que trabalham na inspeção sanitária de produtos e, desses, 33 estão sob investigação, diz o documento. Além disso, das 4.837 unidades processadoras de produtos animais habilitadas para exportação para 160 países, submetidas à fiscalização, apenas 21 estariam sob investigação e, delas, apenas três foram interditadas. A ação espetaculosa e descontrolada da Polícia Federal, portanto, trouxe efeitos desastrosos e altamente danosos, no cenário econômico mundial, para a principal fonte de exportação do Brasil.

 

  1. Efeitos políticos e econômicos da “Operação Carne Fraca”

A ação destrambelhada dos investigadores e sua absoluta irresponsabilidade na divulgação das informações geraram consequências catastróficas para o setor alimentício nacional. Já nos primeiros dias que se seguiram à operação, os governos da China, Hong Kong, Japão, Chile, México, Egito e Argélia suspenderam, total ou parcialmente, a importação da carne brasileira; União Europeia, Estados Unidos, Malásia, Coreia do Sul e Vietnã, por sua vez, reforçaram o controle de qualidade. Calcula-se que só as restrições anunciadas pela China, pela União Europeia e pela Coreia do Sul já poderiam gerar um colapso no setor, uma vez que, de acordo com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, juntos, tais países responderiam por quase 27% das exportações brasileiras de carne em 2016[5], movimentando aproximadamente R$ 3,67 bilhões.

As consequências não pararam por aí. Depois de quase duas décadas tentando conquistar o mercado norte-americano, o Brasil finalmente conseguira, em 2016, a autorização para comercializar seus produtos com os Estados Unidos com equivalência dos controles oficias de qualidade, o que levou o Japão a também reconhecer os selos de qualidade da carne brasileira. A operação policial, porém, quase fez com que todo esse esforço fosse jogado fora: Washington, por exemplo, enrijeceu a fiscalização sobre os produtos brasileiros, e o governo japonês barrou temporariamente a importação de produtos de 21 frigoríficos que estavam sob investigação. Na semana seguinte à operação, a exportação da carne brasileira registrou uma queda de 19%, levando muitos a acreditarem que o colapso indiretamente anunciado pelo Delegado que comandara a “Operação Carne Fraca” estava se consolidando. As ações emergenciais adotadas pelo governo brasileiro e pelos empresários do setor, contudo, reduziram os efeitos do desastre anunciado. O Ministério da Agricultura, respondendo às solicitações feitas pela Rússia, pela União Europeia e pela China, encaminhou informações e notas de esclarecimento sobre a qualidade da carne brasileira; o Itamaraty, com sua tradicional competência, expediu mais de 800 comunicados para os postos diplomáticos no exterior, e, junto à Organização Mundial do Comércio, o governo brasileiro reafirmou a confiabilidade de seus mecanismos de controle qualitativo. Associações de produtores de carne do país inteiro divulgaram notas esclarecendo que o escândalo revelado pela operação não poderia ser estendido a todos os frigoríficos e, a exemplo da Associação Brasileira de Angus[6], declararam “apoio integral ao rígido controle dos processos junto às indústrias frigoríficas brasileiras”, afirmando, porém, que a suposta conduta inadequada perpetrada pelos agentes sob investigação era inexpressiva em relação à produção total nacional. Estavam corretos: no Brasil, existem mais de 4.800 frigoríficos, sendo que apenas 21 deles estavam sob investigação – algo como 0,4%, portanto.

Em pouco tempo, a desastrosa ação dos investigadores teve seus efeitos reduzidos. A maior parte dos países anunciou o fim dos embargos à carne brasileira, e, ao final do mês de março, a recuperação da confiança internacional decorrente da competente atuação do governo brasileiro ficou evidente: contrariando as expectativas negativas, a exportação de carnes pelo Brasil aumentou 9% em relação ao ano anterior (2016).

 

  1. A relevante missão da imprensa e a violação do sigilo funcional

O irrequieto Carlos Lacerda, sempre na oposição, ao expor sua visão do jornalismo, destaca com acuidade as palavras de Alceu Amoroso Lima, um dos patronos de sua formação: “o jornalista é o zelador da comunidade”.

A difícil missão de zelar pela comunidade, disponibilizando acesso às informações, impõe, sem qualquer limite ou restrição, a liberdade de imprensa, garantida pela nossa Constituição[7]. Rui Barbosa, ao discorrer sobre a imprensa e o dever da verdade, alertou que “a imprensa tutelada, a imprensa policiada, a imprensa maculada pela censura deixou de ser imprensa, porque deixou de ser válvula da verdade para se converter em instrumento de sua supressão”[8]. A única censura admissível ao jornalista é a da sua própria consciência, assentada na moral e no direito, no senso ético e na verdade, no respeito à dignidade alheia e no ideal de servir ao interesse coletivo: “Jamais o jornalista deverá impor-se restrições levado pelo medo dos poderosos, pela submissão a interesses subalternos, pelas condescendências mesquinhas. É mister que, no exercício da liberdade indispensável à sua existência e à sua ação, a imprensa não desmande, não abuse, não fuja à caridade em face dos males alheios, para não incorrer nas sanções que o direito impõe, para que não se desacredite perante a sociedade. Porque, quando a imprensa desmanda, desmoraliza-se e, desmoralizando-se, abre ensejo a que os inimigos da liberdade garroteiem o povo, depois de suprimir a livre manifestação do pensamento, de que a imprensa é o principal veículo, e o mais eficiente”[9]. Por isso, deve, necessariamente, haver indispensável equilíbrio e correlação entre a liberdade de imprensa, sem qualquer tipo de censura, e a responsabilidade do propagador da notícia, devendo responder pelos abusos e crimes eventualmente cometidos[10]. O jornalista ou responsável pela matéria deve ser rigoroso na apuração dos fatos e na seleção dos dados. Conferir e verificar todos os detalhes. Em caso de dúvida, consultar especialistas, ir ao arquivo. Tudo se justifica para que a matéria não contenha erro ou informação incompleta, capaz, muitas vezes, de abalar o conceito moral ou o crédito financeiro de pessoas físicas ou jurídicas.

Graças à revolução tecnológica, a mídia passa por transformações e avanços irrefreáveis. Os novos sistemas de difusão de informações distribuem notícias para redações e estúdios no mundo inteiro, imediatamente após a ocorrência dos fatos. Costumeiramente, os meios de comunicação recebem informações on-line e sufocados pela pressão diária do fechamento da edição, ou ansiosos pelo furo de reportagem, não se certificam da veracidade das fontes. Jayme Sirotsky, na presidência da Federação Internacional dos Editores de Jornais, declarou que “muitos jornalistas costumam explicar seus erros alegando que não tiveram tempo para conferir os dados que iriam publicar numa reportagem. Dizem que obedecem a um prazo industrial, com horários rígidos. Para mim isso é desculpa. Quem não teve tempo de apurar direito tem de assumir a responsabilidade de não publicar”[11]. A ausência de refinamento ético e a ânsia de sucesso rápido, mesmo que às custas de danos irreparáveis à integridade moral e reputação das pessoas, têm consubstanciado, como observou o Jornalista Mario Vitor Santos, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, verdadeiro “alpinismo jornalístico”[12] . Não é possível aceitar, a nenhum título ou pretexto, que qualquer cidadão ou ente coletivo seja lançado à irrisão popular, pois é incontestável que as ofensas propagadas pela imprensa têm um poder destrutivo muito grande. A mídia, lembrou Paul Johnson, “é uma arma carregada quando dirigida com intenção hostil contra um indivíduo”[13]. Até a algum tempo atrás, o jornalismo investigativo era uma raridade. Hoje, é costumeiro designar-se repórteres para esclarecer uma denúncia a fundo, ouvir ambos os lados, apontar responsabilidades, evitando-se a difusão de inverdades, travestidas de notícia.

É constrangedor verificar que esses deslizes profissionais, como assinalou Mario Vitor Santos, são construídos tendo “que apelar ao que há de pior no jornalismo, ou seja, torcer fatos, lançar conjecturas difamantes, enganar a boa fé das fontes e misturar verdades, meias-verdades e inverdades”[14]. Ninguém pode, numa sociedade civilizada, a pretexto de exercer o jornalismo, especializar-se na arte de ofender. O abuso e o descomedimento dos incapazes de convivência urbana com a liberdade de imprensa, se não houver controle jurisdicional adequado dos excessos, acabarão conturbando cada vez mais a vida social e lançando aos ventos essa bela conquista do homem moderno. Ao invés dos meios de comunicação servirem à informação e à verdade, findarão por atender apenas a sentimentos mesquinhos. A imprensa séria, livre e responsável será, sempre, sustentada pela credibilidade, um instrumento garantidor das instituições democráticas, não podendo, por isso, “ser transformada numa rampa de lançamento de mísseis”, como já advertiu o jornalista Carlos Alberto di Franco, antigo professor titular de Ética informativa na “Cásper Líbero”[15]. Os assaques vilipendiosos a qualquer pessoa ou ente coletivo, praticados, ou não, por meio da imprensa, têm a potencialidade danosa de abalar sua credibilidade ou, até mesmo, destruir sua reputação. Condutas como essas, portanto, devem ser reprimidas pela legislação penal. Não se deseja que o cidadão deixe de emitir suas opiniões. Entretanto, não há confundir-se a liberdade de expressão com a licenciosidade[16].

Nos dias atuais, a imprensa tem sido uma parceira indissociável das operações policiais. Muitas vezes, antes mesmo de o Juiz competente receber informações sobre os mandados de prisão, busca e apreensão ou interceptação telefônica por ele decretados, os telejornais diários já alardeiam com o destaque habitual os elementos de prova que deveriam ser mantidos em sigilo. Não há que se criticar a imprensa pela publicidade das informações a ela disponibilizadas, garantindo-se o sigilo e inviolabilidade da fonte, protegidos constitucionalmente[17]. Até mesmo a famigerada Lei de Imprensa, resquício do regime militar e revogada pelo STF, em seu artigo 71, reconhecia que “nenhum jornalista ou radialista, ou em geral (…), poderão ser compelidos ou coagidos a indicar o nome do seu informante ou a fonte de suas informações, não podendo o silêncio, a respeito, sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, nem qualquer espécie de penalidade”. A Constituição Federal ao proclamar a inviolabilidade do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional, visou garantir à sociedade a ampla e total divulgação dos fatos e notícias de interesse público, auxiliando, inclusive, a fiscalização da gestão pública e pretendendo evitar as arbitrariedades do Poder Público, propiciadas pela restrição do acesso às informações[18]. Constitui, assim, dupla garantia ao Estado Democrático de Direito: proteção à liberdade de imprensa e proteção ao acesso de informações pela sociedade[19]. Ao contrário desse verdadeiro esteio libertário, nosso Código Penal pune a violação de sigilo funcional praticada por aquele que revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação[20]. O recente artigo publicado pela ombudsman da Folha de S. Paulo,  Paula Cesarino Costa, dois dias após a deflagração da “Operação Carne Fraca”, afirma que as notícias sobre a Lava Jato são parecidas em todos os jornais porque têm uma fonte em comum: a Procuradoria-Geral da República. Valendo-se da melhor técnica do jornalismo investigativo, a ombudsman apurou junto a diversos colegas que, no caso das informações contidas nas delações premiadas de executivos da Odebrecht, os dados foram repassados a jornalistas numa entrevista coletiva em off — jargão jornalístico para informações cuja fonte não é revelada. A estarrecedora revelação fez eclodir a justa e imediata indignação do Ministro Gilmar Mendes, para quem “A imprensa parece acomodada com esse acordo de traslado de informações. Pouca relevância dá ao fato inescapável de que, quando praticado por funcionário público, vazamento é eufemismo para um crime: a violação de sigilo funcional, artigo 325 do CP. Investigações devem ter por objetivo produzir provas, não entreter a opinião pública ou demonstrar autoridade”. Conforme lembrado pelo próprio Ministro, “essa não seria a primeira vez, como confirma a matéria e transparece da experiência recente”, em referência a uma capa da revista Veja que anunciava a suposta delação de um executivo contra o ministro Dias Toffoli: “Quando o depoimento veio a lume, constatou-se que o crime do Ministro não foi corrupção ou lavagem de dinheiro. Foi receber a indicação de um encanador, para consertar vazamento em sua residência”, resumiu o ministro Gilmar Mendes.

Além da inquestionável caracterização de crime, a violação de sigilo funcional, pouco importando se perpetrada pela Procuradoria da República ou Polícia Federal, pode acarretar a contaminação das provas colhidas licitamente, mas divulgadas ilicitamente, gerando sua inadmissibilidade para o processo[21]. As açodadas e criminosas revelações por entes públicos de investigações sigilosas, muitas delas ainda pendentes de homologação pelo Poder Judiciário, como no casos das colaborações premiadas, faz transparecer o óbvio estampado pela imprensa, ao noticiar que as delações da Odebrecht contêm erros e contradições[22].

A Operação Lava Jato (e seus desdobramentos) tem revelado, quase que diariamente, que o relacionamento do setor público com o setor privado é ainda marcado por absoluta falta de transparência; mais do que isso, ao trazerem à tona um dos maiores casos de corrupção do mundo, as investigações têm se consolidado como importante mecanismo de democratização das estruturas de poder, na medida em que um Estado só pode ser considerado democrático quando sua atuação se pauta pelo princípio da publicidade (art. 37 da Constituição), ou, como prefere Bobbio, quando o poder é exercido à luz do dia[23].

A grandiosidade da operação, e sua inegável importância histórica, não podem, contudo, justificar os desmandos e as indesculpáveis violações ­­­­a direitos fundamentais que têm, em alguma medida, marcado seu dia a dia. Como bem apontou Cezar Roberto Bitencourt em recente artigo, há, infelizmente, “uma grande inversão da ordem natural das coisas, isto é, da ordem jurídica, dos direitos e garantias do cidadão, parecendo que realmente escreveram uma nova constituição, uma nova ordem jurídica, exclusiva para eles, ao arrepio da Carta Magna deste país”[24].

Ainda que o combate à corrupção seja louvável e absolutamente necessário para a consolidação de um real sistema republicano, não podemos permitir que os holofotes voltados às investigações e às personalidades egoísticas dos seus condutores, ofusquem garantias constitucionais duramente conquistadas. Se é inegável que as investigações realizadas pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal apuram ilicitudes que tiveram efeitos deletérios aos cofres públicos (e, portanto, para a própria cidadania), então também somos forçados a reconhecer que no curso desse processo de depuração não podem ser cometidas ilegalidades. Atos ilícitos podem e devem ser combatidos, mas dentro dos limites da lei; ignorá-la é abrir margem para o arbítrio, e significa, em última instância, ignorar o próprio fundamento do combate à corrupção.

As conduções coercitivas realizadas totalmente ao arrepio da lei e as colaborações premiadas[25] alcançadas em decorrência de infindáveis e injustificadas prisões provisórias, já demonstram suas fragilidades, erros e contradições. A moralidade é um valor maior, mas não é o único, e não pode ser assegurado a qualquer custo[26]. A tão aclamada moralidade pública, que deve reger a atuação da Administração (art. 37, CF), não se confunde com o moralismo daqueles responsáveis pela fiscalização de seu cumprimento. Como aponta Juarez Freitas, o princípio da moralidade consiste, em verdade, na vedação a condutas eticamente inaceitáveis e transgressoras do senso moral médio superior da sociedade, a ponto de não comportarem condescendência, não se confundindo, por certo, com o moralismo, este último intolerante e não universalizável por definição[27].

 

  1. Os riscos da comunicação e a responsabilização pelos vazamentos de informação

A crítica dedicada neste espaço à espetacularização das operações da Polícia Federal, que têm causado tantos malefícios a pessoas físicas e jurídicas, não deve ser generalizada: trata-se de problema recorrente, mas ainda individualizável. Os servidores públicos que cometeram tais abusos devem ser responsabilizados administrativa e criminalmente. Ainda que a pirotecnia utilizada na divulgação dos dados da investigação represente a irresponsabilidade de apenas alguns servidores, pode-se apontar uma solução que se aplique às instituições como um todo. Neste sentido, Carlos Ari Sundfeld[28], com usual acuidade, sugere que os problemas oriundos da “Carne Fraca” estão intimamente relacionados aos riscos da comunicação, e questiona: “Ninguém percebeu que certos indícios poderiam ser ainda frágeis, tudo a recomendar uma estratégia de comunicação bem menos espetaculosa?”. A questão, então, se amplia, passando para o âmbito institucional, “e como tal tem de ser enfrentada”. Sob essa perspectiva, surge a importância do Projeto de Lei no 349/2015, de autoria do Senador e Professor da UFMG Antonio Anastasia. Sugere-se, resumidamente, que seja incluída na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei no 4.657/1942, com alterações trazidas pela Lei no 12.376/2010) o artigo 27, com a seguinte redação: “A decisão do processo, na esfera administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”. Trata-se, como apontou Sundfeld, do reconhecimento de que as entidades públicas (e, portanto, os agentes que nelas atuam) devem considerar não apenas a forma pela qual são tornadas públicas suas decisões, mas também os riscos inerentes a essa comunicação; mais do que isso, reconhece-se que os eventuais prejuízos causados aos envolvidos, a depender do caso, devem ser compensados, o que revela a total harmonia do projeto com o tratamento constitucional dado às relações entre o Estado e os cidadãos (art. 37, § 6o, CF). É preciso destacar, ainda, que tão grave quanto a problemática estratégia de comunicação adotada pela Polícia Federal, foi a falta de escopo técnico que marcou a “Operação Carne Fraca”.

Em franca desconsideração à orientação normativa do Código de Processo Penal, a autoridade policial que presidiu a “Operação Carne Fraca” não atentou aos procedimentos obrigatórios ali descritos. Entre eles, logo que tivesse conhecimento da prática da infração penal, deveria determinar, que se procedesse a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias[29]. Ao arrepio da lei, no dia em que a operação foi deflagrada, o Delegado de Polícia responsável resolveu, sem qualquer justificativa plausível, dispensar o apoio dos peritos oficiais da Polícia Federal, deixando transparecer que as provas contingenciais até então encontradas seriam suficientes para revelar a indispensável comprovação da materialidade criminosa[30], afastando qualquer dúvida em relação às supostas fraudes alimentares cometidas pelos frigoríficos. A dura nota divulgada pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) deixou a situação muito clara: “A abordagem quase exclusiva de provas contingenciais deu aos  responsáveis pelo comando da operação à equivocada ideia de que tudo poderia ser concluído de imediato e sem qualquer dúvida, apenas com aquilo que se chama circunstancial”; e ainda ressaltou, sem qualquer excesso, que “a ‘operação Carne Fraca’ tornou-se uma clara demonstração de como o conhecimento técnico e o saber científico, em todas as etapas da investigação, não podem ser deixadas de lado em favorecimento dos aspectos subjetivos da investigação criminal” [31].

 

  1. Conclusão

A forma nefasta como transcorreu a “Operação Carne Fraca” é apenas mais um exemplo dos muitos vivenciados nos dias atuais, da potencialidade lesiva advinda de medidas revestidas de legalidade, mas que, no seu bojo, trazem prejuízos morais e econômicos muitas vezes irreparáveis aos investigados. Vivemos dias de assustadora patrulha ideológica, de caça às bruxas. De uma conformação social binária, onde ou se está do lado do bem, ou flertando com o mal. O partidarismo em voga é fruto, sim, dessa modalidade inadequada de investigar policialmente. De uma maneira espetaculosa e excessiva por parte das autoridades públicas e, muitas vezes, convalidada e espraiada irresponsavelmente pelos propaladores da notícia, sem um mínimo de refinamento ético.

Michael Kunze, ao retratar a história documentada de um erro judiciário ocorrido em 1.600, em plena era das torturas legais, discorre sobre a horda ensandecida em busca de um culpado: “Acima de tudo, porém, procuravam-se bodes expiatórios. Para quem tem o coração tomado pelo terror, é um alívio estar em meio a uma multidão excitada, apontar para um ‘culpado’ e gritar ‘Queima!’. A idade do medo é a idade do fogo e da fogueira. Mas o alívio que a multidão ameaçada experimentava com os gritos das vítimas e o crepitar das chamas era passageiro. A espessa fumaça que se eleva dessas conflagrações serve apenas para tornar mais escuro o céu, para tornar a ameaça geral ainda mais óbvia”[32].

Estejamos atentos para que os desmandos, ainda que travestidos de boas intenções, não prevaleçam sobre o Direito. Os fins nunca justificam os meios.

  1. Bibliografia

– <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/12/agronegocio-deve-ter-crescimento-de-2-em-2017>;

– <http://g1.globo.com/economia/noticia/paises-importadores-anunciam-restricoes-a-carne-brasileira-apos-operacao-da-pf.ghtml>;

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– Mangabeira, João. Rui, o Estadista da República;

– Oliveira, Almir de. A imprensa, sua missão e sua liberdade. Revista de informação legislativa, v. 9, n. 34, abril de 1972;

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Folha de S. Paulo, 25.07.93, p. 1-6.

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– Moraes, Alexandre de. Constituição no Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 6. ed., São Paulo: Atlas, 2006;

– STF – Inq. No 870-2/RJ – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 15 abr. 1996, p. 11.462;

Folha de S. Paulo, 07.05.17, Poder;

– BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo, 1.ed., São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 29;

– <http://www.conjur.com.br/2017-mar-27/cezar-bitencourt-espetacularizacao-irresponsavel-delegado>

– CASTELO BRANCO, Tales e Fernando. De tropeço em tropeço, artigo publicado na Folha de São Paulo em 23.03.2016;

– BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, Moralidade a qualquer custo?, artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30.03.2017;

– FREITAS. Juarez. O controle dos atos administrativos e os direitos fundamentais. 3ªed. São Paulo: Malheiros: 2004;

– SUNDFELD, Carlos Ari. Qual carne é fraca?, publicado no site Direito de Estado, ano 2017, número 339, em 20.03.2017;

-<http://apcf.org.br/Noticias/AgenciaAPCF/tabid/341/post/nota-apcf—carne-fraca/Default.aspx>; e

A caminho da fogueira – Da vida e da morte no tempo da caça às bruxas, Editora Campus, 1989, Rio de Janeiro.

 

Notas de Rodapé:

[1] Às vezes, de forma inconcebível, detectamos a valorização da coisa em detrimento do ser humano: o latrocínio, consubstanciado no roubo seguido de morte, possui em nosso ordenamento jurídico pena mais severa do que o estupro seguido de morte (reclusão de 20 a 30 anos, e reclusão de 12 a 30 anos, respectivamente).

[2] Disponível em <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/12/agronegocio-deve-ter-crescimento-de-2-em-2017>.

[3] “Dilúvio” foi o nome dado a uma das operações da PF em 2012. A operação foi deflagrada em oito estados do Brasil e em Miami, nos Estados Unidos com o objetivo de desarticular o maior esquema, até então, já constatado de fraudes no comércio exterior, interposição fraudulenta, sonegação, falsidade ideológica e documental, evasão de divisas, cooptação de servidores públicos, entre outros ilícitos, cometidos por um grupo empresarial estabelecido em São Paulo e com diversas ramificações.

[4] Nem mesmo a Operação Lava Jato teve tanta repercussão diplomática e nas relações do comércio exterior.

[5] Disponível em <http://g1.globo.com/economia/noticia/paises-importadores-anunciam-restricoes-a-carne-brasileira-apos-operacao-da-pf.ghtml>.

[6] Íntegra da nota disponível em <http://angus.org.br/acarnedobrasileforte/>.

[7] Artigo 5o, IV e IX.

[8] Mangabeira, João. Rui, o Estadista da República, p. 204.

[9] Oliveira, Almir de. A imprensa, sua missão e sua liberdade. Revista de informação legislativa, v. 9, n. 34, p. 97-112, abril de 1972.

[10] Artigos 138, 139 e 140 do Código Penal.

[11] Paulo Moreira Leite, Entrevista de Jayme Sirotsky, Contra a Autocensura, Veja, 22.05.96.

[12] 25.07.93, p. 1-6.

[13] O Estado de S. Paulo, 07.08.93, p. 2.

[14] Ibidem.

[15] O Estado de São Paulo, 07.08.93, p. 2.

[16] Castelo Branco, Fernando. A pessoa jurídica no processo penal, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 206-9.

[17] Artigo 5o, XIV.

[18] Moraes, Alexandre de. Constituição no Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 6. ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 256.

[19] “A proteção constitucional que confere ao jornalista o direito de não proceder à disclosure da fonte de informação ou de não revelar a pessoa de seu informante desautoriza qualquer medida tendente a pressionar ou a constranger o profissional da Imprensa a indicar a origem das informações a que teve acesso, eis que – não custa insistir – os jornalistas, em tema de sigilo da fonte, não se expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, por isso mesmo, em função do exercício dessa legítima prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou administrativa” (STF – Inq. No 870-2/RJ – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 15 abr. 1996, p. 11.462).

[20] Artigo 325 do CP.

[21] Artigo 5o, LVI, da CF.

[22] Folha de S. Paulo, 07.05.17, Poder.

[23] BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo, 1.ed., São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 29.

[24] Disponível em <http://www.conjur.com.br/2017-mar-27/cezar-bitencourt-espetacularizacao-irresponsavel-delegado>.

[25] CASTELO BRANCO, Tales e Fernando. De tropeço em tropeço, artigo publicado na Folha de São Paulo em 23.03.2016 (disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/03/1752994-de-tropeco-em-tropeco.shtml>).

[26] BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos, Moralidade a qualquer custo?, artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30.03.2017.

[27] FREITAS. Juarez. O controle dos atos administrativos e os direitos fundamentais. 3ªed. São Paulo: Malheiros: 2004, p. 53-56.

[28] SUNDFELD, Carlos Ari. Qual carne é fraca?, publicado no site Direito de Estado, ano 2017, número 339, em 20.03.2017 (disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/carlos-ari-sundfeld/qual-carne-e-fraca->, acesso em 28.04.2017).

[29] Artigo 6o, VII do CPP.

[30] Artigo 158 do CPP

[31] Disponível, na íntegra, em <http://apcf.org.br/Noticias/AgenciaAPCF/tabid/341/post/nota-apcf—carne-fraca/Default.aspx>.

[32] A caminho da fogueira – Da vida e da morte no tempo da caça às bruxas, Editora Campus, 1989, Rio de Janeiro, prefácio.