Vítimas rompem o silêncio e se sentem encorajadas a denunciar seus algozes

 

8.out.2020

Folha de São Paulo

Por Fernando Castelo Branco e Luciana Temer

 

Depois do caso da menina de dez anos estuprada e, a princípio, impedida de fazer um aborto ao qual tinha direito, agora é a vez do médico Abib Maldaun Neto tomar conta da mídia. Ele está sendo acusado de abusar sexualmente de suas pacientes. Fez isso com várias, mas o caso só veio à tona quando, em 2014, uma delas teve coragem de denunciar.

A vítima, uma mulher de 31 anos, procurou o nutrólogo porque estava com dificuldade de perder peso. Ao examiná-la, sem enfermeira na sala, iniciou o exame clínico apalpando sua virilha, supostamente na procura de possíveis gânglios. Depois disse que iria ver como estava sua libido, começou a estimular o clitóris e introduziu dois dedos em sua vagina. A Associação Brasileira de Nutrologia já esclareceu que não é função do nutrólogo fazer diagnóstico e exames relacionados à vida sexual dos pacientes.

O caso foi levado ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo e, no transcorrer do procedimento ético-disciplinar, descobriu-se uma segunda vítima, violentada pelo mesmo médico em 2012. Aquela representação, no entanto, havia sido arquivada pois, segundo o CRM-SP, era a primeira contra o dr. ​Abib e resumia-se à palavra da vítima contra a do médico. Com o novo relato, essa primeira representação foi desarquivada e segue também sob investigação. Além da denúncia no CRM-SP, instaurou-se em 2014 um processo criminal, que resultou na condenação do médico por violação sexual mediante fraude.

O que este caso, o da menina de dez anos e tantas outras violências sexuais têm em comum? O silêncio. A menina de dez anos vinha sendo estuprada desde os seis, o que não é incomum. O relatório de violências sexuais contra crianças e adolescentes do Ministério da Saúde aponta que cerca de 40% das violências são reiteradas. As vítimas do médico, inicialmente, também se calaram. Com a repercussão do caso na imprensa, mais de 20 mulheres já tiveram a coragem de denunciar os abusos sofridos.

Precisamos entender de onde vem esse silêncio. Uma das causas é, sem sombra de dúvida, o fato de a vítima ser de alguma forma culpabilizada pela violência sofrida. Vejam as perguntas que boa parte das pessoas faz ao ouvir histórias como essas: Por que ela (menina) não contou para ninguém? Por que ela (paciente) ficou passiva diante da situação e não impediu o médico? São questionamentos que tentam descobrir qual a “parcela de culpa” da vítima na violência, uma inversão total de perspectiva, própria de uma sociedade machista.

Mas vamos pegar o caso concreto da criança de dez anos e das pacientes do nutrólogo para refletir a respeito dessas questões? Muito bem, em primeiro lugar, vale a pena lembrar que boa parte dos abusos ocorre em situações nas quais a vítima estaria supostamente segura, na chamada zona de proteção. No caso da menina, dentro de casa, com pessoas de confiança. No caso da paciente, em um consultório médico, local também de suposta segurança.

Em segundo lugar, muitas vítimas se calam porque sabem que serão desacreditadas. Veja que a primeira denúncia no CRM-SP foi arquivada por ser apenas a palavra da vítima contra a do médico. E é assim em muitos casos. Quando não há evidências físicas, é normalmente a palavra da vítima contra a do abusador. Crimes sexuais dessa natureza acontecem normalmente entre quatro paredes, das casas e dos consultórios.

Para além disso tudo, há uma leniência da sociedade com casos considerados “leves” ou “improváveis”. Imagine que, mesmo após a condenação criminal em duas instâncias, o nutrólogo continuava atendendo normalmente! Só depois da grande exposição do caso na mídia é que outras vítimas (inclusive adolescentes) tiveram coragem de se expor. O Conselho Regional de Medicina, na quarta-feira (7), cassou a sua licença.

Daí a extrema importância da imprensa, responsável e investigativa, para dar visibilidade para esses casos. Quem sabe quando todos falarem de violência sexual esta questão alcance o tamanho e a gravidade que realmente tem, as vítimas sejam encorajadas a denunciar e essas denúncias sejam levadas a sério.

 

 

* Fernando Castelo Branco

Advogado criminal e professor de processo penal da PUC-SP, representa as vítimas do nutrólogo Abib Maldaun Neto

* Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e da Uninove e presidente do Instituto Liberta

 

 

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