A Constitucionalidade da Delação Premiada
Revista Fórum Jurídico, edição 7, ano 4, out/2015, p. 4-5
SEÇÃO OPINIÃO
A Constitucionalidade da Delação Premiada
NÃO
A delação premiada, além de consagrada em diversos países, não é novidade no universo jurídico nacional. Previsões desse gênero vigoram entre nós desde o Brasil colônia, quando as Ordenações Filipinas previam, no Título CXVI de seu Livro V, a maneira de “como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão” (ipsis litteris).
Modernamente, diversos diplomas legais trouxeram semelhantes disposições, com destaque para as Leis nºs 8.072/90, 9.613/98 e 9.807/99 (“Lei de Crimes Hediondos”, “Lei de Lavagem de Dinheiro” e “Lei de assistência a vítimas e a testemunhas ameaçadas”, respectivamente).
Foi, contudo, somente com o recente advento da Lei nº 12.850/13, que cuida da repressão às organizações criminosas, que a delação premiada (ali eufemisticamente tratada como “colaboração premiada”) ganhou notoriedade, passando a ser largamente utilizada e fazendo ressurgir o necessário debate sobre sua legalidade, constitucionalidade e sobre os aspectos éticos e morais que a circundam.
De forma resumida, o instituto prevê prêmios, que vão desde a redução da pena até o perdão ou o não oferecimento da denúncia, ao criminoso que, de forma voluntária e efetiva, delatar seus comparsas, contribuindo para atingir alguns dos fins dispostos em lei.
A primeira e mais saliente crítica que se faz é de ordem moral e ética: mostra-se absolutamente reprovável o expediente de o Poder Público associar-se a um criminoso para incentivar e gratificar a traição entre cidadãos que supostamente praticaram ilícitos penais, pois, como afirma Hassemer, o Estado não pode utilizar os meios empregados pelos criminosos, já que perderia sua prevalência moral sobre o crime e, a longo prazo, colocaria em risco a própria credibilidade e confiança na ordem jurídica estatal[1].
Tal circunstância também coloca em xeque a própria idoneidade do depoimento prestado pelo delator, uma vez que não é difícil supor que a declaração decorrente de uma traição seja também ardilosa em seu conteúdo.
Além disso, da forma como previsto, o instituto padece de inegável inconstitucionalidade: a necessária renúncia ao direito ao silêncio (art. 4º, § 14, da Lei 12.850/13) afronta manifestamente a Constituição Federal e os pactos de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário que preveem tal garantia, na medida em que os direitos fundamentais são sabidamente irrenunciáveis. Na lição de Cezar Roberto Bitencourt, “o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de ‘colaborar’ com a Justiça, ou seja, na condição de colaborador”[2].
Porém, é na aplicação prática do instituto que residem as maiores transgressões legais.
Não é demais lembrar que, muito embora agora se tente negar o inegável, um Procurador oficiante na Operação Lava Jato (na qual foram firmados dezenas de termos de colaboração) confirmou categoricamente o que todos supunham: que as prisões processuais ali decretadas se justificariam para “convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos[3]” e que “o passarinho para cantar precisa estar preso”[4]. Ou seja, prende-se com o inescusável objetivo de se extrair a fórceps uma delação.
Aqueles que defendem essa perniciosa prática olvidam-se de que a prisão processual é medida excepcional e só tem cabimento em caso de extrema e comprovada necessidade. Sobre o assunto, Tales Castelo Branco traçou o seguinte paralelo: “O que está acontecendo é um retorno à Idade Média, quando a tortura era legal e era mediante ela que extorquiam as confissões”[5].
Esse expediente – de prender-se para delatar – ofende, portanto, a garantia de proibição de provas ilícitas e o princípio da excepcionalidade do encarceramento, constitucionalmente assegurados, e vai contra a própria Lei, que exige voluntariedade na colaboração. Embora voluntariedade não se confunda com espontaneidade – pouco importando se o acordo é oferecido pelo delator ou pelo agente público –, ela pressupõe a possibilidade de que o acusado possa escolher pela delação, sem ser colocado em situação que o impeça de tomar outra decisão.
Com vistas a impedir esse deletério e ilegal uso da prisão processual, tem-se discutido a bem-vinda proposta de se impedir ou limitar a realização de acordos de delação premiada por réus presos.
Além disso, nesses casos, a já criticada falta de credibilidade da delação se torna ainda mais patente, pois, como bem ponderou Arnaldo Malheiros Filho, “quem pode comprar a liberdade com a palavra dirá a palavra que quiserem ouvir” [6]. A título de exemplo, noticiou-se recentemente caso que comprova esse receio: nos Estados Unidos, um inocente permaneceu preso por 13 anos, após ser “delatado” por um assassino que teve sua imunidade assegurada pela delação.
Tem-se verificado, também, a adoção de outra prática manifestamente ilegal na formulação das propostas de acordo de delação premiada: a necessidade de que o colaborador renuncie ao direito de recorrer ou de impetrar ações impugnativas, ainda que relativas a questões processuais e técnicas. A boa notícia, nesse ponto, é que o eminente Ministro Teori Zavascki, ao homologar acordo de delação, excluiu as restrições quanto ao acesso jurisdicional.
Espera-se que as ilegalidades teóricas e práticas relativas à delação premiada sejam amplamente discutidas, combatidas e extirpadas de nosso ordenamento e que o Estado, ao invés de oficialmente consorciar-se ao próprio delinquente na função de obter provas de práticas criminosas, retome para si o papel que cabe exclusivamente a ele.
Gustavo Neves Forte
Advogado criminal, sócio do escritório Castelo Branco Advogados Associados. Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP.
Professor convidado do LL.M. em Direito Empresarial, Negócios e Tributos do Instituto Business Group – IBG.
Membro da Comissão de Seleção e Inscrição da OAB/SP. Associado efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Associado ao Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA e Membro de seu Comitê Penal. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.
[1] HASSEMER, Winfried. Revista de Ciencias Penales de Costa Rica. Límites del Estado de Derecho para el combate contra la criminalidade organizada, n. 14, p. 10. Tradução livre de: “El Estado necesita, también de cara a la población, una prevalencia moral sobre el delito, que no sólo sea fundamentada normativamente sino que también actúe de manera práctico-simbólica. El Estado no debe utilizar métodos criminales ya que perdería esta prevalencia y con ello, y a largo plazo, pondría en peligro la credibilidad y la confianza de la población en el orden jurídico estatal”.
[2] Delação premiada na “lava jato” está eivada de inconstitucionalidades, Revista Consultor Jurídico, 04.12.12, disponível em http://www.conjur.com.br/2014-dez-04/cezar-bitencourt-nulidades-delacao-premiada-lava-jato, acessado em 20.08.15.
[3] Trecho de parecer do MPF apresentado ao TRF no caso Lava Jato.
[4] Em parecer, MPF defende prisões preventivas para forçar réus a confessar, Revista Consultor Jurídico, 274.11.2014, disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes, acessado em 20.08.2014.
[5] Entrevista publicada em 05.12.14, no site El País (Operação Lava Jata desafia os melhores advogados do Brasil), disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/05/politica/1417805491_151821.html, acessado em 20.08.15.
[6] Entrevista publicada em 18.02.15, pelo site Consultor Jurídico (Caso nos EUA expõe riscos de delação premiada, dizem especialistas), disponível em http://www.conjur.com.br/2015-fev-18/eua-expoe-riscos-delacao-premiada-dizem-especialistas, acessado em 20.08.15.