Opinião

18 de junho de 2019

Consultor Jurídico

Por Raphael Debes e Alice Gaudiot

No Brasil, a criminalização das drogas é antiga, tendo o primeiro texto legislativo específico sobre o tema surgido em 1921, por intermédio do Decreto 4.294/21. A previsão, à época, era que quem comercializasse substâncias entorpecentes — como cocaína e ópio — receberia pena de prisão.

Desde então, a legislação passou por importantes alterações que a tornaram mais rígida, valendo registrar a Lei 6.368/1976, que instituiu procedimento criminal próprio e seis tipos penais específicos relacionados aos entorpecentes (tráfico ou a entrega a consumo; instrumentos e objetos para fabricação de drogas; associação ao tráfico; prescrição culposa de drogas; porte para uso próprio; e violação de sigilo de procedimentos policiais ou judiciais relacionados aos crimes previstos na lei), que, em sua maioria, ainda encontram tipificação penal até os dias atuais.

Percebe-se atualmente uma tendência mundial a adotar nova postura frente ao uso e tráfico de drogas, especialmente no que se refere à maconha: a Holanda autoriza sua venda e consumo em cafés desde os anos 1970; nos Estados Unidos, a primeira prescrição médica foi permitida judicialmente em 1988; existem Clubes Sociais Canábicos na Espanha desde a década de 1990; e o Uruguai autoriza que a erva seja produzida, distribuída e consumida desde o fim de 2013[1]. O Brasil, no entanto, permanece com um posicionamento mais repressivo nessa seara.

Após a promulgação da Constituição de 1988, o combate às drogas ganhou maior relevo, tornando o tráfico de entorpecentes um crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia, além de prever a possibilidade de extradição do brasileiro naturalizado que comprovadamente estiver envolvido com referida prática criminosa. Com a Lei 8.072/90, o tráfico de drogas foi equiparado a crime hediondo, e atualmente a Lei 11.343/06 regulamenta a matéria, prevendo medidas para a prevenção e repressão ao tráfico.

Não há, ainda hoje, norma específica que dê significado à expressão “drogas”, sendo uma norma penal em branco em sentido estrito — aquele em que a integração do tipo se socorrerá de ato normativo distinto de lei, normalmente expedido por órgãos reguladores em razão do inegável conhecimento sobre determinado tema. Para preencher a lacuna referente à definição de drogas, utiliza-se a Portaria 344/98 da Anvisa, onde, dentre os elementos de uso proscrito previstos em tal regulamento, encontra-se o Tetraidrocanabinol – THC, principal substância encontrada nas plantas do gênero cannabis.

Sabendo disso, e levando-se em conta que o artigo 36 da Lei 11.343/06 comina pena de 8 a 20 anos de reclusão àquele que financiar ou custear o tráfico de drogas, seria ilegal investir montante em fundo de investimento que aloque seus recursos em projetos no exterior que explorem cannabis, caso nesses países a prática seja permitida?

Primeiramente, é necessário entender o que significam os termos financiar e custear: financiar “significa sustentar os gastos, custear, bancar, prover o capital necessário para o desenvolvimento do tráfico de drogas”[2], ao passo que custear “consiste em prover despesas, gastos”[3], por meio de bens móveis distintos do dinheiro. Para que os delitos previstos no artigo 36 se perfaçam, no entanto, é necessário que as condutas neles previstas sejam praticadas “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Não se verificando tal elemento, a conduta se torna atípica e, portanto, insuscetível de punição.

Em segundo lugar, deve-se entender o Direito Penal no espaço. O território delimita a jurisdição que um Estado soberano detém para processar e julgar crimes de acordo com as suas leis. Partindo dessa premissa, o Código Penal brasileiro adotou, como regra, o princípio da territorialidade, que dispõe ser aplicável “a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional” (artigo 5º). A expressão território alcança “todo o espaço — terrestre, fluvial, marítimo e aéreo — onde o Brasil é soberano”[4].

O Código Penal também cuidou expressamente das exceções à regra da territorialidade, permitindo que a lei brasileira seja aplicada mesmo que o crime tenha sido cometido no exterior. A aplicação da legislação nacional, nesse caso, tem caráter misto, pois também significa legitimar a instauração de processo penal contra o agente perante a Justiça do Brasil[5]:

“a extraterritorialidade da lei brasileira tem um significado penal e processual penal, pois a prevalência extraterritorial da lei nacional importa persecução do agente perante a Justiça brasileira”.

Dentre as hipóteses previstas para a aplicação da lei brasileira no exterior, o artigo 7º, II, do Código Penal prevê os crimes em que o Brasil, por tratado ou convenção, se comprometeu a reprimir; foram cometidos por brasileiro; e foram praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada[6], quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.

Entretanto, para que incida a lei brasileira, é imprescindível que estejam presentes cinco condições, previstas no artigo 7º, parágrafo 2º, do Código Penal: entrar o agente em território nacional; ser o fato punível também no país em que foi praticado; estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; não ter sido o agente absolvido no exterior ou não ter lá cumprido pena; e não sido o agente perdoado no exterior ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Assim, somente nos casos em que se verifica a presença acumulada desses requisitos é que as leis brasileiras incidirão sobre brasileiro que tiver cometido crime no exterior, por meio da extraterritorialidade condicionada.

Especificamente no que se refere aos delitos previstos no artigo 36 da Lei 11.343/06, a lei brasileira não os incluiu dentre aqueles em que se proíbe a extradição (artigo 82 da Lei 13.445/17) — inclusive, a própria Constituição Federal permite a extradição de brasileiro naturalizado quando “comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas” (artigo 5º, LI, da CF).

Entretanto, conforme visto, para que incida a lei nacional, é imprescindível que o ato configure crime no país onde foi praticado. É ilegítima a pretensão de punir conduta praticada no exterior em conformidade com as leis locais, ainda que seja contrária à legislação brasileira. Trata-se, conforme entendimento doutrinário majoritário, de condição objetiva de punibilidade ulterior à ação ou omissão. Conforme ensina Luiz Regis Prado[7]:

Há nas leis penais momentos objetivos (dem Delikt ganz fremden) — estranhos ao delito — que constituem, em verdade, pressupostos da punibilidade. São condições ulteriores da punição (Die anderweiten Bedingungen der Strafrechte), alheias ao ato delituoso e que, em razão disso, devem ser analisadas em separado.

A necessidade de que a conduta também configure crime no país onde foi praticada é denominada pela doutrina de “dupla tipicidade” ou “dupla incriminação”, e decorre diretamente do princípio fundamental de Direito Penal “consagrado em todo o direito comparado e nas ordens constitucionais modernas, atinentes ao nullum crimen sine lege[8] — não há crime sem lei. No entanto, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, não é necessário que os tipos penais sejam idênticos (nomen iuris), sendo suficiente a identificação de similitude dos elementos que estruturem o crime[9]:

O que realmente importa, na aferição do postulado da dupla tipicidade, é a presença dos elementos estruturantes do tipo penal (“essentialia delicti”), tais como definidos nos preceitos primários de incriminação constantes da legislação brasileira e vigentes no ordenamento positivo do Estado requerente, independentemente da designação formal por eles atribuída aos fatos delituosos.

Em conclusão, inobstante o ato de financiar a exploração de cannabis seja vedado no Brasil pelo artigo 36 da Lei 11.343/06, se o seu exercício for autorizado no exterior, a conduta não será criminosa e, portanto, não poderá ser punida pela lei brasileira. Caso o investidor brasileiro tome as devidas cautelas quanto à operação financeira em si, remetendo os valores de origem comprovada e lícita ao exterior segundo as normas legais e regulamentares, não estará ele incorrendo em ilícito penal ao aplicar em fundo de investimento que aloque seus recursos em projetos que explorem cannabis onde a atividade é legalizada, pois ausente a condição objetiva de punibilidade do artigo 7º, parágrafo 2º, b, do Código Penal.

[1] MARONNA, Cristiano Avila. Os novos rumos da política de drogas: enquanto o mundo avança, o Brasil corre risco de retroceder. In: SCHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014. p. 43-64. [2] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 4ª ed., Salvador: JusPODIVM, 2016. v. único. p. 773. [3] Idem, ibidem. [4] DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 97. [5] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 111. [6] Por força de uma ficção jurídica, o território nacional se estende às embarcações e aeronaves, nos moldes do disposto nos parágrafos do artigo 5º do Código Penal. [7] PRADO, Luiz Regis. Apontamentos sobre a punibilidade e suas condicionantes positiva e negativa, in Direito Penal e processo penal: parte geral. v. 2. Coleção doutrinas essenciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1.343. [8] PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de direito penal: parte geral. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 173. [9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição n. 1.703. Requerente: Governo do Peru. Extraditado: Cledy Vasquez Ramirez. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 30 de abril de 2008. Diário de Justiça Eletrônico, 29 de agosto de 2008.

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Raphael Debes é advogado criminalista, pós-graduado em Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Alice Gaudiot é advogada criminalista, graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

Revista Consultor Jurídico, 18 de junho de 2019